19 outubro 2011

Texto de apoio à espiritualidade pessoal e comunitária

VIDA CRISTÃ NO DIA A DIA

Estudo realizado na UMEAB da Catedral da Santíssima Trindade. Porto Alegre RS. 16 de Agosto de 2011. Assessor: Revdo. Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves.

1. A cotidianidade da vida cristã

Algumas orações do nosso Livro de Oração Comum nos chamam a atenção para o fato da vida cristã ser vivida no dia a dia. Uma de que sempre me tocou mais é a Geral Ação de Graças no final do rito da Oração Matutina/Vesperina, onde oramos assim:

(...) e proclamemos teus louvores não somente com os nossos lábios, mas com as nossas vidas, entregando-nos inteiramente ao teu serviço, e andando na tua presença em santidade e retidão todos os nossos dias (...) – LOC, IEAB,1999; p.40.

Seguindo o princípio anglicano de lex orandi, lex credendi, isto é, oramos aquilo que cremos, poderíamos afirmar que esta oração responde quase que plenamente como orientação para a vida cristã cotidiana. A vida cristã é, em primeiro lugar, uma vida de gratidão a Deus por todas as benções recebidas e, especialmente, “por Teu inestimável amor na redenção do mundo por nosso Senhor Jesus Cristo, pelos meios de graça e esperança da glória” (na mesma oração citada acima).

Nossas vidas, que se vivem cotidianamente, devem ser postas a disposição de Deus para, como espelhos, refletirem Sua Graça maravilhosa e eterna. Como? Primeiro servindo! E isto tem tudo a ver com a parábola do julgamento final presente em Mateus 25:31-46. Nesta passagem, diante do grande juiz (pantocrator – como o chamou a teologia e a iconografia), tantos as pessoas “salvas” quanto as “condenadas” se surpreendem quando Jesus diz que elas o “viram” sem abrigo, com fome, preso, sem teto; ao qual Ele responde: “toda vez que...” (este “toda vez” indica a cotidianidade do serviço).

Em Mateus se registra que o seguimento cotidiano do Reino de Deus não é o que algumas pessoas iriam alegar dizendo:

Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitas maravilhas?” (7:22b). Este tipo de “prática” não é a prática da Palavra de Deus, segundo o próprio Jesus esclarece logo a seguir, quando fala da casa construída na rocha ou na aréia (7:24,26).

Então o que seria o verdadeiro louvor que leva à verdadeira prática do serviço, à verdadeira entrega, e ao verdadeiro caminho cotidiano na presença do Senhor?

2. Serviço e oração para servir, como base da vida cristã

Obviamente, uma questão tão ampla não poderá ser respondida em poucas palavras ou conceitos. A simplicidade da vida cristã está mais na humildade das perguntas e na permanente busca de respostas, do que em afirmações taxativas e definitivas sobre alguma coisa. Temos, contudo, a Bíblia, e em especial o Novo Testamento, para nos iluminar em nossa busca e nos dar a devida orientação.

Como falamos antes a palavra “serviço” resume praticamente tudo o que uma pessoa cristã deve fazer no seguimento de Cristo, o próprio Senhor afirmou que veio para servir e não para ser servido (Marcos 10:45; entre outros textos). Diversas ordens, sodalícios e irmandades mantêm o lema: ora et labora. No entanto, conforme foi mostrado anteriormente, ambas - orar e trabalhar – fazem parte de um único serviço! Como afirma a Carta de Tiago, Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras” (Tiago 2:18). Orar também é serviço; quando a oração nasce do serviço e se volta para o serviço. Orar não é serviço quando substitui a prática concreta do Evangelho em nossa realidade, neste caso é alienação.

2.1 Vida cristã como entrega

Uma coisa que nos mostrou com claridade o apóstolo Paulo, é que o serviço na vida cristã não é o que nos fazemos para Deus, mas o que Deus faz, em nós e através de nós:

Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim. Gálatas 2:20.

A entrega de Cristo por nós só tem efetividade na nossa prática cotidiana de serviço se houver, da nossa parte, a disposição de nos entregar completamente a Ele, como vemos em outros dois importantes trechos dos Evangelhos:

E chamando a si a multidão, com os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. Porque qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas, qualquer que perder a sua vida por amor de mim e do evangelho, esse a salvará. (Marcos 8:34-35; entre outros).

Cada manhã, a cada parada, em cada sacramento, em cada busca de sabedoria e luz na Palavra de Deus, em cada momento de louvor e celebração, o primeiro movimento, o primeiro pensamento e a primeira ações deve ser a entrega total a Cristo. Sem esta entrega não a vida cristã possível!

2.2 Vida cristã como confiança

A outra cara da moeda da entrega é a confiança. Entregamos tudo a Cristo porque confiamos plenamente em Sua Graça e Amor, como acontece no Rito do Batismo quando é perguntado às pessoas que trazem a criança, ou a quem será batizado/a: “Depositas toda a tua confiança em sua graça e amor?”. Então responde: “No Senhor confio” (LOC, p.164).

Esta confiança faz com que seja a graça de Deus o fator principal do sucesso no enfrentamento dos desafios cotidianos da vida, e até daqueles maiores que irrompem e estremecem em nosso dia a dia. Esta é a orientação que recebemos do Senhor:

Não vos inquieteis, pois, pelo dia amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. (Mateus 6:34).

Ou se referindo a oração:

Por isso vos digo que todas as coisas que pedirdes, orando, crede receber, e tê-las-eis (Marcos 11:24; cf. João 14:13; 15:16 e 16:23).

O poder da oração é poder da entrega confiante a Deus! Também por isso o Senhor desafia todas as pessoas ao afirmar:

(...)porque em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e há de passar; e nada vos será impossível ( Mateus 17:20b).

Desta forma toda nossa vida deve ser uma “oração” e toda oração deve se traduzir em atitudes mais confiantes em relação a nossa vida. Parece-me que é neste sentido que devemos entender o apelo do apóstolo Paulo para orarmos constantemente (I Tessalonicenses 5:17)!

2.3 Vida cristã como vigilância

Jesus nos orienta a ficar em “estado alerta máximo”, porque Ele se revela em cada detalhe, a cada dia, dando sinais permanentes da Sua presença; nos orientando, nos desafiando e nos animando. Mas, a atividade de Deus precisa de nossa atenção, e nosso serviço na vida cristã é uma resposta a esta atividade! Não podemos servir se não observamos o que Deus está fazendo entre nós, em nós, na nossa volta, e participarmos da Sua obra! Por isso hoje dizemos que não temos uma missão nossa, mas que participamos da Missão de Deus (Missio Dei). Vejam a orientação bíblica neste sentido:

Olhai, vigiai e orai; porque não sabeis quando chegará o tempo (...) e as coisas que vos digo, digo-as a todos: Vigiai.(Marcos 13:33,37).

Não é que devamos viver apavorados e vigiando por medo. Mas, se desejamos que o Senhor volte em glória para consumar tudo o que iniciou e renovar toda a criação (Ap 21:1-3), também devemos, com o mesmo desejo, ficarmos atentos/as aos sinais do Seu Reino entre nós, na volta de nós e dentro de nós! Não somos templos do Espírito Santo? (I Coríntios 6:19). Então, devemos, através da vigilância, manter os templos abertos, dispostos, acolhedores para a presença de Deus, para as pessoas que ele envia e para Seus sinais.

2.4 Vida cristã como serviço amoroso

Bem conhecemos o resumo dos mandamentos que consta no começo de nosso Rito I da Santa Eucaristia (LOC,p.54) citando Mateus 22:37-40. Portanto, sem amor também é impossível a vida cristã! Mas este amor é primeiro amor a Deus (no sentido da entrega, da confiança e da vigilância) e depois, como reflexo do amor de Deus, é amor ao próximo, assim como a nós mesmos/as.

Amor, do ponto de vista do Evangelho, mais do que um princípio é uma atitude diaria. Quando Jesus manda amar os inimigos lembra que todas as pessoas amam seus amigos (Mateus 5:46-47). Sendo que o Evangelho segundo João é ainda mais claro no sentido de que nosso amor deve ser reflexo do amor de Jesus Cristo:

Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis. (João 13:34; cf. 15:12)

O amor a Deus e ao próximo se manfiesta principalmente no perdão e na acolhida. Perdoar é o sinal máximo do agradecimento pelo amor que recebemos de Deus. Não perdoamos porque somos pessoas boas, perdoamos porque somos pessoas conscientes do perdão que diaramente recebemos de Deus. Como, de novo nos fala Jesus:

E, se pecar contra ti sete vezes no dia, e sete vezes no dia vier ter contigo, dizendo: Arrependo-me; perdoa-lhe (Lucas 17:14).

Ou ainda:

Por isso te digo que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama (Lucas 7:47).

Quem não perdoa não é consciente da necessidade do perdão de Deus e não consegue amar constantemente e intensamente. Portanto não serve com amor, e sem amor não é possível servir a Deus.

O serviço amoroso se contenta com viver o amor (1 Coríntios 13:1-13). Pode que um simples “obrigado/a” seja tudo o reconhecimento necessário, dado com amor por quem se sentiu motivado/a para isso e recebido com amor por quem não dependia disso para servir. Neste sentido o Evangelo afirma que nossa vida de serviço poderá ser resumida na frase:

Assim também vós, quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos somente o que devíamos fazer (Lucas 17:10).

3. A vida cristã: muito mais atitudes do que atividades

Como podemos ver, a vida cristã não pode ser medida pela quantidade de atividades, ou pela rotina, mas pelas atitudes comprometidas que a pessoa portadora da graça de Deus desenvolve no seu dia a dia.

Devemos encher mais de espiritualidade nossa religiosidade. Com isso queremos dizer que devemos sentir mais profundamente a presença de Deus como a constante motivação para todas nossas ações. Não apenas fazer ações pré-determinadas para preenhcer obrigações religiosas que, conforme acreditamos, nos tornem pessoas merecedoras da salvação. Não merecemos a salvação! Não somos salvos por qualquer mérito a não ser pelo inestimável amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, para conosco e para com todas as pessoas! Uma vida de gratidão é uma vida de compromisso, de doação, de oração, enfim, de serviço a Deus em Cristo!