22 abril 2013

Leitura Popular da Bíblia: uma abordagem agnlicana e ecumênica.

1.     INTRODUÇÃO


            O presente trabalho é um estudo sobre as visões que se tem da Bíblia Sagrada, privilegiando o enfoque dado pela Leitura Popular da Bíblia, o qual se configura em uma abordagem exegética utilizada no âmbito da Teologia da Libertação ou Hermenêutica da Libertação, que se configura na opção preferencial pelos pobres e excluídos. Ele foi produzido como última avaliação da disciplina Introdução à Bíblia, ministrada pelo Rev. Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves[1], no curso de Teologia à Distância mantido pelo Seminário Teológico Dom Egmont Machado Krischke (SETEK).
            Em nossa abordagem, utilizamos como referências básicas textos do próprio Rev. Maiztegui, do Frei Carlos Mesters e de Pablo Richard, além da Bíblia Sagrada. Estes teólogos demonstram de maneira aprofundada e em linguagem acessível reflexões sobre os caminhos por onde andou a exegética, distanciando a Palavra de Deus das pessoas e aproximando-a de grupos que mantiveram seu predomínio econômico-social ao longo de tempo.
            Abraçar a Teologia da Libertação não é uma atitude fácil, uma vez que ela pode levar a uma série de conflitos com os próprios grupos comunitários com os quais se inicia o trabalho. Isto é verdade, especialmente, caso o trabalho seja direcionado para uma atuação mais político-partidária, uma vez que uma radicalização desta ação possa levar a divisões internas dentro da Igreja, causando incompreensões de lado a lado.
            Um trabalho consciente é feito na dosagem certa e colherá, assim, melhores resultados. Se o objetivo é que as pessoas escutem a “fala de Deus”, então que se examine criticamente o direcionamento que se está tomando para saber se o projeto que se está seguindo é divino ou puramente humano.


2.     BÍBLIA: FONTE DE VIDA E DA LITURGIA
Rita de Cássia Silva Sacramento[2]

Deus não emudece pelo fato de se ter fechado o cânon bíblico. Deus continua vivo e conosco e, se é um Deus vivo, é um Deus que fala, um Deus que se revela e comunica.
Pablo Richard

            Uma das poucas afirmações feitas pelos cristãos de todas as denominações religiosas é a de que a Bíblia é fonte de vida e contém as verdades essenciais para a salvação dos fiéis. Esta afirmação, no entanto, não recebe nas diferentes Igrejas existentes a mesma conceitualização: o que é ser fonte de vida? Para alguns, é ser um caminho iniciado por Deus com seu povo e que tem o objetivo de realização de um projeto que é a implantação do Reino de Deus entre nós. Para outros, é ser um manual de instruções em que regras são ditadas para que as pessoas possam colocá-las em prática e serem merecedoras da salvação. Para outros ainda é dar o conhecimento de como adorar corretamente a Deus, entregando a Ele sua vida através do desligamento “das coisas do mundo” para beneficiar-se da Vida Eterna.
            Como se vê, não é fácil chegar a um consenso em torno das interpretações das denominações religiosas e muito menos determinar quem está certo ou errado nestas concepções. A propósito, a decisão de escolher qual denominação está certa ou errada tira o significado mais profundo do Evangelho de Jesus Cristo: o amor e a fraternidade.
E eis que um legista se levantou e lhe disse, para pô-lo à prova: “Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Jesus lhe disse: “Que está escrito na Lei? Como o lês?” Ele lhe respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua força e com todo o teu pensamento, e o teu próximo como a ti mesmo”. Jesus lhe disse: “Respondeste bem. Faze isto e terás a vida”. (Lc 10,25-28)

            Neste trecho do Evangelho, o legista[3] demonstra ter a compreensão de que o alvo da caminhada dos seguidores de Cristo é alcançar a salvação. Isto é surpreendente, já que a maioria dos judeus não acredita na ressurreição. Parece-nos, portanto, que o ele de fato acompanhava as andanças de Jesus e ouvia suas pregações com atenção, independentemente de aderir à nova mensagem. Este doutor da lei compreendeu que o Decálogo resumia-se em dois mandamentos e conseguiu responder à pergunta de Jesus com precisão.
            A lição deste trecho do Evangelho para nós é entender que em primeiro lugar no Cristianismo deve estar o amor (1Cor 13) e logo em seguida, a fraternidade, pois não existe Boa Nova sem incluirmos o outro em nossa vida. Sem estes dois elementos fundamentais, não há como caminhar pela estrada de Jesus. Sem o amor e a fraternidade, chegamos ao ponto a que chegou a maioria das denominações religiosas: à competição e ao rancor.
            Além de ser fonte de vida, a Bíblia é fonte da liturgia. Mas o que é liturgia? A palavra liturgia vem do grego leiturguia, que é composto por leiton-érgon e significa “ação para o povo”. Se consultarmos o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2004), por exemplo, também veremos que o significado de liturgia é “1 o conjunto dos elementos e práticas do culto religioso (missa, orações, cerimônias, sacramentos, objetos de culto etc.) instituídos por uma Igreja ou seita religiosa”. Para um melhor esclarecimento sobre o significado da liturgia, podemos lembrar do que escreveu o Ven. Arc. Luiz Caetano Gracco Teixeira no artigo Introdução Básica à Liturgia Cristã, o qual foi publicado na Revista Inclusividade nº 6:
A liturgia cristã não é simplesmente um conjunto de ações, gestos e palavras edificantes que ajudam o cristão a rezar e sentir-se bem; a liturgia não é simplesmente uma atividade cênica cuja finalidade seria provocar bem estar emocional. Tampouco é um conjunto de gestos e palavras mágicas que teriam o poder de alterar ou interferir na natureza ou na própria história humana. Quem assim pensa, confunde liturgia com magia.

            Destas duas fontes, portanto, podemos chegar às seguintes conclusões sobre liturgia: 1) é inerente ao culto religioso; 2) não é exclusiva de nenhuma denominação religiosa cristã, nem de uma religião específica; 3) consiste de ações, gestos, palavras, objetos e vestimentas utilizados para uso no culto religioso sem ser uma atividade cênica para as pessoas que dela participam; 4) não tem caráter de magia.
            Quando dizemos, então, que a Bíblia é fonte da liturgia, indicamos que temos consciência de que é na Bíblia que estão indicados os elementos litúrgicos que dão origem ao culto religioso não só dos cristãos, mas primariamente do povo judeu. Desde o Antigo Testamento (a Torá, especificamente) constatamos que Deus prescreve sacrifícios, datas para honrá-Lo, vestes, ornamentos, recipientes e gestos litúrgicos para conduzir o culto judaico em conformidade com Sua grandiosidade, em agradecimento por sua dedicação e amor ao povo por Ele escolhido.
            Assim, o culto judaico inspira os cristãos a continuarem com a tradição litúrgica, reconhecendo um dia e uma época especial para honrar a Cristo (domingo/Páscoa), lembrando seu sacrifício redentor através do memorial que é por Ele mesmo instituído e celebrando sua Ressurreição dentre os mortos.
            A caminhada iniciada por Deus no Antigo Testamento é continuada por Cristo no Novo Testamento, que estabelece uma Nova Aliança com quem desejar segui-Lo. Esta caminhada tem como objetivo final a vida em abundância de que o Pai bem como o
Filho são a fonte (Jo 5, 26).


2.1  Hermenêutica e exegética

            Em primeiro lugar é necessário que se esclareça que embora sejam parecidas, a hermenêutica e a exegética têm suas especificidades: a hermenêutica é uma ciência cujo objeto é a interpretação de textos, sejam eles de natureza bíblica, filosófica, literária, histórica, etc. Desta forma, a hermenêutica funciona num âmbito muito mais amplo do que a exegética, que se configura num ramo da Teologia cujo objetivo é estudar os textos bíblicos, interpretá-los e ensiná-los.
            Na definição de D. Humberto Maiztegui Gonçalves contida no Dicionário Brasileiro de Teologia (2008), a hermenêutica tem caráter histórico, linguístico, dialético, ontológico, textual, atual e subjetivo. No caso específico da hermenêutica bíblica, têm sido utilizados, ao longo do tempo, os métodos alegórico ou espiritual (que foi utilizado inclusive pelo apóstolo Paulo), literal (que teve início na Idade Média através de interpretações judaicas, influenciando Tomás de Aquino e alcançando os primeiros reformadores protestantes), moral ou tropológico e o anagógico ou escatológico (estes últimos ainda durante a Idade Média).
            Pablo Richard (1988) refere-se a estes métodos como dimensões, após distinguir dois sentidos que são utilizados para a interpretação da revelação divina através da Bíblia: o sentido literal e o sentido espiritual. Para ele, é no sentido espiritual que estão presentes os sentidos (dimensões) alegórico, moral ou tropológico (ou antropológico) e anagógico ou escatológico. Explica ele:
Uma primeira dimensão do sentido espiritual é o sentido alegórico (allegoria), que nos indica o que devemos crer, isto é, constitui uma nova interpretação, funda uma nova teologia, uma nova maneira de entender. Uma segunda dimensão do sentido espiritual é o sentido moral (moralis) ou sentido tropológico ou antropológico, que nos ensina o que devemos fazer, isto é, este sentido cria uma nova prática, uma nova maneira de ser ou agir na história. Enfim, temos a dimensão dada pelo sentido anagógico (anagogia) ou escatológico, que nos indica para onde devemos caminhar ou tender, isto é, cria uma nova esperança, novo projeto histórico, nova utopia. (RICHARD, 1988, p.14)

            A partir da Idade Moderna, Gonçalves (2008) identifica o aparecimento do método contextual (século XVI) e do Método Histórico-crítico (MHC), influenciado pelo pensamento iluminista alemão e deísta inglês dos séculos XVII e XVIII. Este método buscou compatibilizar a fé e a razão através da aplicação do pensamento científico à interpretação da Bíblia, o que não foi uma exclusividade da Teologia, mas uma tendência a partir do século XVIII atingindo seu apogeu no século XIX, época em que a ciência adquiriu maior prestígio do que a religião, sobretudo na Inglaterra, então no auge da Revolução Industrial e da Revolução Científica.
            No século XX, surgem a análise semiótica/semântica-estrutural, a interpretação existencial ou demitização, a interpretação psicológica, a interpretação desconstrucionista, a hermenêutica sociológica ou leitura materialista, a leitura popular, a hermenêutica feminista, a negra e a indígena (GONÇALVES, 2008). É claro, portanto, o direcionamento da hermenêutica para uma maior aproximação com o indivíduo e, em seguida, com as questões sociais. Esta mudança busca novamente aproximar Deus do povo e das aspirações deste, visando reencontrar o caminho perdido seguindo, então, por uma nova direção.
            Todos estes desenvolvimentos já coincidem com a exegética, visto estarem no âmbito da interpretação bíblica, parte inequívoca e inseparável da Teologia. Goldingay (1995) apud Gonçalves (2006) define a exegese como uma “tentativa de chegar a um acurado entendimento histórico do ponto onde o texto da Escritura se origina” e aponta quatro momentos de que ela se utiliza para alcançar seus objetivos: a síntese ou reflexão, a apropriação, a aplicação e a comunicação.
            O entendimento histórico e a análise da mentalidade que permeava o período em que o autor bíblico escreveu são fundamentais para se chegar a uma exegese de característica mais contextual e menos fundamentalista alcançando, como resultado, as fases de aplicação e de comunicação que se constituem, respectivamente, na descoberta da “fala de Deus”, nas preocupações d’Ele para o nosso tempo e nas formas de compartilhamento das novas interpretações para as pessoas, a fim de se alcançar uma nova ação no meio comunitário.
As leituras fundamentalistas causam, na maioria das pessoas anglicanas do Brasil, certo “incômodo” provocando a demanda por uma exegese bíblica capaz de devolver a liberdade de ser e crer incentivando, também, a participação na defesa do meio ambiente e da justiça social, política e econômica e, principalmente, de acolher as pessoas, com amor e sem constrangimentos. (GONÇALVES, 2006)

            Como podemos observar, o caminho percorrido pela hermenêutica/exegética é longo e diverso, predominando as interpretações clássicas/conservadoras, mesmo no século XX por grande parte das denominações religiosas cristãs, inclusive setores da própria Igreja Anglicana. Isto porque percebemos uma inclinação sempre mais tendente para interpretação literal da Bíblia, uma vez que ela é percebida como um guia comportamental para se chegar à salvação, deixando-se de lado a compreensão da realização do Reino de Deus em nosso meio.
            A constatação de D. Humberto Maiztegui Gonçalves pode ser conferida na atitude das Igrejas em relação à causa da valorização das mulheres, dos negros, dos índios e dos homossexuais. Grande parte das denominações não consegue alcançar estas pessoas, conferindo-lhes um papel de igualdade na comunidade e relegando-as a papéis secundários (ou terciários!) no trabalho eclesial.
            Em relação às mulheres, a Igreja Anglicana já demonstrou ter entendido que não há justificativa para considerá-la inferior e submissa aos homens ao permitir que elas sejam ordenadas ao presbiterato e também ao episcopado[4]. A esta abertura têm aderido outras denominações religiosas, sobretudo evangélicas, onde as mulheres têm assumido as funções de pastoras, liderando o povo.
            Em relação aos negros, percebe-se que ainda é pequena a participação de pessoas afrodescendentes em ministérios ordenados. Isto não acontece apenas na Igreja Anglicana, muito embora haja um exemplo admirável de inclusão e tolerância racial na condução de John Sentamu à Arquidiocese de York (Inglaterra), onde exerce sua primazia sobre o povo inglês, de expressiva maioria branca. Após o anúncio do arcebispo de Canterbury, Dr. Rowan Williams, primaz de toda a Comunhão Anglicana, de sua renúncia no final de 2012 ao cargo que tem exercido desde 2003, o arcebispo John Sentamu colocou seu nome sob o exame dos anglicanos para sucedê-lo como Arcebispo de Canterbury e se tornar o primeiro negro eleito chefe do toda a Comunhão Anglicana. O escolhido foi Justin Welby, bispo de Durham.
            O caso dos índios é ainda mais emblemático em relação à exclusão exegética. Mais de quinhentos anos depois da ocupação do Novo Mundo pelos europeus, nenhuma denominação conseguiu incluir adequadamente os povos aborígenes às comunidades cristãs. Tentativas foram feitas pelas denominações que estabeleceram seu predomínio nas diversas nações americanas que se formaram, mas o que se percebe hoje é que praticamente não existem lideranças indígenas alçadas às instâncias clericais. Desta forma, mostra-se retumbante o fracasso das denominações cristãs em levar o Evangelho para os índios, sem expropriar deles sua cultura.
            No mês de julho de 2012, D. Sebastião Armando Gameleira Soares, bispo da Diocese Anglicana do Recife esteve em Ilhéus, na Bahia, onde foi instalar o Ponto Missionário da Santíssima Trindade. Lá, recebeu seis novos membros da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, vinculados à Paróquia do Bom Pastor (Salvador/BA), dentre eles estava um indígena de nome Sandro (Caramuru, da tribo Tupinambá), que batizou seus dois filhos. Na ocasião, os indígenas queixaram-se ao bispo a respeito de Igrejas evangélicas que chegam a Ilhéus dividindo o povo e desprezando a cultura indígena, classificando-a de paganismo inspirado pelo diabo e pediram ao bispo que a Igreja Anglicana dialogue com a tribo para começar a criar uma comunidade cristã que assuma a cultura indígena.
Sandro é membro da tribo aborígene Tupinambá, onde se chama pelo nome de Caramuru. À cerimônia estavam presentes trinta pessoas, entre essas o cacique Jaguar e sua esposa Potira. Foram batizadas as duas crianças de Luciano e as duas de Sandro, estas chamadas pelos dois nomes que carregam, mas tendo o nome indígena pronunciado em primeiro lugar. Imaginem, o nome do menino é Tupã. Foi lindo ver na assembleia litúrgica Sandro, o cacique e as crianças vestidos a rigor, de acordo com a tradição indígena: tanga, cocar, maracá na mão, pés descalços e o corpo pintado. Dom Sebastião convidara o cacique a tomar lugar a seu lado, à esquerda da mesa do altar. (Sítio da Diocese Anglicana do Recife)

            Na tradição europeia herdada pelo Brasil, não existe a menor possibilidade de receber indígenas usando suas vestimentas comuns numa assembleia litúrgica. Antes de serem aceitos na comunidade, os índios deveriam assumir os costumes dos colonizadores e abandonar séculos de cultura nativa. Neste exemplo se encontra o reflexo da intolerância e do desrespeito com o outro mostrado através do comportamento dos evangélicos que trazem a divisão ao invés de lutarem pela inclusão. O desafio da Igreja Anglicana é ser autêntica no seguimento fiel ao Evangelho de Jesus Cristo, não deixando que injustiças como estas sejam feitas.
            A inclusão dos homossexuais é, no entanto, a mais ruidosa. Ela suscita grandes conflitos mesmo dentro da Comunhão Anglicana, que tem a Inclusividade como uma de suas principais atuações. Como ela será processada, não o sabemos. Sem dúvida, no entanto, Jesus Cristo estaria se aproximando dos homossexuais caso vivesse em nosso mundo de hoje, pois ele veio “para que todos tenham vida, e vida em abundância”. O que pode ser mais importante para que alguém tenha vida em abundância do que ter felicidade? Ao viver num mundo que o considera como “anormal” e “imoral”, o homossexual é alijado de seu direito de ser feliz. A vida em abundância é dele tirada, portanto.
            A percepção de que a exegese não está conseguindo matar a sede por Deus do povo, mas afastando-o da Bíblia, é explorada por Carlos Mesters no livro Por trás das palavras (1984). Para ele, o povo tem silenciado diante das explicações que a exegética lhe dá, uma vez que elas não correspondem à sua realidade, tornando o discurso bíblico similar a um discurso histórico, perdendo a vivacidade e a atualidade:
Este silêncio é eloquente. Fala mais do que muitas palavras, pois, sem o saber, pelo seu silêncio, o povo acusa, ameaça e solapa pela base o sistema que o condenou à mudez e à ignorância e o destinou a ser doutrinado, sem participar, correndo o risco de perder a sabedoria que tem desde séculos e de substituí-la por outros valores e conhecimentos. (MESTERS, 1984, p.33)

            Ao se afastarem do povo através dessa exegese sem vida, as Igrejas históricas cristãs esvaziam-se, dando espaço para o crescimento da Teologia da Prosperidade. Este enfoque exegético parece se aproximar mais do povo porque surgiu da percepção das necessidades que ele tem em países onde a exclusão é muito forte, como no Brasil. No entanto, a Teologia da Prosperidade leva para mais longe ainda do sentido da Bíblia as pessoas, uma vez que o ideal da “vitória em Cristo” é o alcance quase que exclusivamente de melhorias financeiras, o que condiz com a ideologia e a cultura reinantes.
            No Evangelho, no entanto, Jesus nos ensina o que é importante para ser fiel à aliança com Deus em Mt 6,31-33:
Não vos preocupeis, portanto, dizendo: ‘Que comeremos? que beberemos? com que vestiremos?’ – tudo isso os pagãos procuram sem descanso –, pois bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de todas estas coisas. Procurai primeiro o Reino e a justiça de Deus, e tudo vos será dado por acréscimo. (BÍBLIA TEB, 1995, p.1200)
               
                A mensagem de Jesus, muito embora tivesse sido proclamada há mais de dois mil anos pode ser entendida no contexto da popularização da Teologia da Prosperidade. Com o que se preocupam os “apóstolos/as”, “bispos/as” e “pastores/as” das denominações que propagam este ideário? Eles sabem em que contexto social vivem seus adesistas em potencial e vão à cata deles com o discurso certo. Prometem vida próspera e antes disto sugam o resto de dignidade que o pobre possa ter, enriquecendo às custas daqueles que deveriam proteger e aprofundando sua alienação. São, na verdade, os pagãos de que fala Jesus. Só servem para negociar com o Evangelho e não para propagá-lo conforme o mandato que foi dado por Cristo. Não buscam o Reino e a justiça de Deus, que são justamente ouvir o povo sobre sua experiência espiritual e levá-lo a aprofundar a mensagem do Evangelho com direcionamento para os pobres de Deus, que são todas aquelas pessoas excluídas da vida em abundância.

2.2  A eclesialidade anglicana


            A teologia anglicana se assenta em um tripé epistemológico. Este tripé se constitui de Bíblia, Tradição e Razão.
            Como todas as denominações cristãs, a Igreja Anglicana tem a Bíblia como livro basilar, fonte onde se encontram os textos indicativos do projeto de Deus e da implantação de seu Reino entre nós. Este projeto consiste numa grande caminhada iniciada por Javé com Abraão e consolidada com Moisés no resgate do povo da escravidão do Egito, em direção à liberdade e ao estabelecimento de uma vida próspera e abençoada por/com Deus na Terra Prometida.
            A caminhada iniciada no Antigo Testamento teve sua sequência no cumprimento da missão de Jesus Cristo, filho de Deus que se encarnou e veio viver entre o seu povo, trazendo um novo paradigma religioso que expôs o desvio implantado pelos chefes do povo (sacerdotes judeus) em relação ao caminho indicado e percorrido por Deus e seu povo. Esta deturpação da mensagem de Deus ao longo da história não é exclusiva de escribas, fariseus e saduceus, mas permanece após a consolidação da Igreja Cristã, através do olhar dos tradutores e exegetas bíblicos que imprimiram aspectos culturais e também ideológicos aos textos sagrados.

Dado que a Bíblia se apresenta de forma abstrata, cortada de suas raízes históricas e espirituais no mundo dos pobres, e dado que normalmente a tradução é feita por peritos que respiram o mundo cultural, ideológico e espiritual do sistema dominante, surge a suspeita de que toda tradução da Bíblia para uma língua moderna seja normalmente reconstrução do texto original na cultura, ideologia e espiritualidade do sistema dominante. (RICHARD, 1988, p.20)


            Desta forma, as traduções da Bíblia podem macular seu verdadeiro sentido espiritual, servindo para ratificar práticas religiosas, sociais e políticas que seriam rejeitadas por Cristo.
            Diante desta realidade, a Igreja Anglicana não olha a Bíblia como o único local em que esteja contida a Palavra de Deus. Entende que Deus fala a todo momento utilizando-se de outros canais através dos quais possa estabelecer a comunicação com o seu povo.
            Um dos canais utilizados por Deus é a Tradição, segunda ponta do tripé. Entende-se por Tradição o modo como os cristãos compreenderam e expressaram a fé, construindo a Igreja de Cristo através de ações de evangelização, de convivência comunitária, de manutenção de um corpo de sacerdotes para conduzir o culto (presbíteros e bispos), de observância ao dia da Ressurreição do Senhor para louvor e adoração a Deus e de organização litúrgica, especialmente a conferência de sacramentos para os fiéis.
            A Tradição está expressa na Bíblia em fatos narrados no Antigo Testamento, no Evangelho e nas cartas apostólicas, mas também está no ensinamento dos Apóstolos que não foram incluídos nos textos canônicos, mas foram passados para os fiéis ao longo do tempo em que estes Apóstolos conduziram as comunidades que fundaram; dos bispos e dos doutores da fé. A Tradição sistematizou a Igreja cristã e ajuda a mantê-la convergente com o espírito de amor e fraternidade expressos desde o surgimento da Igreja primitiva.
            O outro elemento constitutivo do tripé é a Razão. A Razão é o reconhecimento da mensagem bíblica, relacionando-a com o tempo em que vivemos hoje. Ou seja, a Bíblia foi escrita no passado, por escritores que tinham uma visão da realidade limitada à sua mentalidade cultural. É preciso compreender esta mensagem com os olhos de hoje, adequando seu estudo à realidade a que estamos inseridos, deixando de lado os preconceitos humanos e procurando enxergar com os olhos de Deus.
            Diante deste desafio de romper com as interpretações clássicas que afastam o homem da verdade de Deus, é que surge o conceito de inclusividade. A inclusividade surge do uso da razão: se Deus criou um povo, libertou-o da escravidão, deu-lhe uma terra para construir sua nação, fez surgir dele o messias, houve um propósito amoroso para fazê-lo. Ele não tomou estas providências apenas para encher este povo de leis que não pudessem cumprir, para lançá-lo na perdição eterna. Se assim tivesse feito, teria escravizado o povo ao invés de libertá-lo.
            Vejamos o seguinte exemplo retirado de Jo 4,27-28. Os discípulos chegam e encontram Jesus conversando com uma mulher samaritana: “Nisso os discípulos chegaram. Eles ficaram estupefatos ao verem Jesus falar com uma mulher; mais ninguém lhe disse: ‘Que procuras?’ ou ‘Por que lhe falas?’” Deste trecho do Evangelho podemos retirar dois entendimentos: a) Jesus quebrou um preconceito e uma proibição social ao conversar com uma mulher, que inclusive era samaritana! Desta forma, ele mostrou que Deus não exclui as mulheres de seu Reino; b) os discípulos entenderam o gesto de Jesus e não procuraram lhe dar lição de moral pelo comportamento socialmente reprovável: o amor não pode ser nutrido por preconceitos.
            Em outro exemplo, podemos observar o diálogo de Jesus com os fariseus que julgam inválidas as palavras do Cristo por dar testemunho de si mesmo. Ao que este responde (Jo 8, 15-16): “Vós julgais de modo puramente humano. Eu não julgo ninguém; e se me acontecer julgar, o meu julgamento é conforme à verdade, porque eu não estou sozinho: há também Aquele que me enviou.” Aqui Jesus deixa claro que a visão de Deus é diferente da dos sacerdotes, que achavam que entendiam as Escrituras. Ao classificar o julgamento dos fariseus como “puramente humano”, Jesus invalida todos os (pre)conceitos religiosos que eles têm e mostra o verdadeiro olhar de Deus.
            Como se vê, a eclesialidade anglicana contrasta com a de boa parte da de outras denominações religiosas. Do ponto de vista da prática evangélica, isto é muito bom. No entanto, tal fundamento religioso pode causar problemas e conflitos num mundo acostumado com uma interpretação do Evangelho construída sob o prisma do predomínio cultural europeu sobre os próprios textos sagrados.


2.3  A leitura popular da Bíblia

            Quando começamos a ler a Bíblia percebemos, desde o Gênesis, a preocupação de Deus com as pessoas. Após criar o mundo, Ele sente necessidade de colocar no paraíso terrestre um ser inteligente que possa dominar a criação e dela usufruir. Cria, portanto, o ser humano: macho e fêmea (Gn 1,26-27), abençoa-os e ordena que sejam fecundos, prolíficos e dominem a terra (Gn 1, 28). A partir do momento que o ser humano peca, mesmo punindo-o pela desobediência, Deus começa a preparar sua redenção.
            Como podemos observar, Deus se faz sempre presente na vida das pessoas. Ele está atento às suas necessidades e não as abandona: está sempre pronto a perdoar seus erros/pecados e caminhar com elas rumo à redenção. É justamente isto que acontece depois do pecado de Adão: Deus faz um novo plano. Ele decide preparar um povo que seja digno de gerar Seu próprio Filho para que ele conceda o perdão e o leve à salvação.
            Ao longo do tempo, o Cristianismo se distanciou da leitura bíblica que percebe Deus como um Pai preocupado com o bem estar de seus filhos e se aproximou da leitura que mostra Deus como um Senhor que tudo vê e tudo cobra das pessoas. A percepção do poder de Deus se sobrepôs à da misericórdia e do amor que Ele dedica à sua criação. Mesmo Jesus tendo vindo e demonstrado que as interpretações, os julgamentos estavam errados, judeus e cristãos não compreenderam o cerne da mensagem, e continuaram a pensar nas leis para privilegiar as regras de comportamento e esquecer o essencial. Como disse Antoine de Saint-Exupery em uma das muitas reflexões contidas em seu livro O Pequeno Príncipe, “o essencial é invisível aos olhos”. O essencial é o amor/caridade como bem percebe São Paulo em sua carta aos Coríntios.

No tempo que vai desde o início do cristianismo até o começo da época moderna, não existiam ainda no povo as dificuldades que lançavam dúvidas sobre a veracidade histórica da Bíblia. Com a máxima tranquilidade, a Bíblia era aceita e lida como se liam os outros livros de história daqueles tempos. (MESTERS, 1984, p.47)


            Com esta visão de um livro de história comum, porém inspirado por Deus, a Bíblia deixou de ser um livro de espiritualidade comunitária e passou a ser um livro de história sagrada onde aprendemos como Abraão, Isaac e Jacó obedeceram a Deus e foram recompensados por isto e como Jesus veio ao mundo e fez tantos milagres, sendo incompreendido e morrendo assassinado na cruz.
            Esta visão que enfatiza o aspecto histórico da Bíblia, deixando o verdadeiro sentido espiritual de lado começou a ser modificada com novos estudos iniciados na América Latina denominados Leitura Popular da Bíblia ou Hermenêutica da Libertação. Aqui se enfatiza a noção de povo, identificando-o com o pobre. No entendimento da Hermenêutica da Libertação, o conceito de pobre é utilizado em sentido amplo, abrangendo trabalhadores de baixo poder aquisitivo do campo e da cidade, pessoas que são vistas como inferiores perante a sociedade por questões de sexo, raça, etnia e orientação sexual (mulheres, negros, índios e homossexuais). Ou seja, as pessoas que antes não tinham voz são ouvidas e mostram sua experiência e cooperação em trazer o verdadeiro sentido espiritual da Bíblia que é: Deus ouve as angústias do pobre, caminha com ele e cura suas feridas.

O mundo dos pobres não é apenas uma realidade econômica, política e cultural, mas também é – à luz da fé – o lugar privilegiado da presença e revelação de Deus. (...) É nesse mundo que hoje fazemos nova experiência espiritual. Deus aparece neste contexto histórico com outro rosto e nos interpela com uma palavra diferente. (RICHARD, 1988, p.10)

            A Leitura Popular da Bíblia tem seu lugar privilegiado nas Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s, da Igreja Católica Apostólica Romana. Apesar de ter ajudado a recuperar o sentido espiritual da Bíblia, a ruptura hermenêutica que provoca gera atritos dentro da própria Igreja onde surgiu, uma vez que determina a imersão do povo na política, abalando estruturas consolidadas e ajudando a transformar a sociedade.

2.4  Considerações finais

            O uso da Bíblia dentro da nova perspectiva de Leitura Popular é algo agradável e desafiador, pois abre os olhos do leitor para novos aspectos que antes eram deixados de lado. Na prática anglicana, nas reflexões feitas na Paróquia Anglicana do Bom Pastor (Salvador/BA), deixamos de focalizar demasiadamente os milagres, ou eventos de maior destaque na ação ministerial de Jesus, por exemplo, e enfocamos outras mensagens presentes no mesmo texto que, muitas vezes, sofrem prejuízo nas reflexões tradicionais. Isto ajuda a enxergar o Evangelho de uma maneira nova, totalmente desligado das cobranças de perfeição que são contempladas na maioria das vezes.
            A Leitura Popular da Bíblia nos direcionar para a realidade que Jesus Cristo queria nos fazer enxergar.
REFERÊNCIAS


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DIOCESE ANGLICANA DO RECIFE – Visita pastoral a Ilhéus, Bahia. in http://dar.ieab.org.br/2012/07/12/visita-pastoral-a-ilheus-bahia . Recife: Julho de 2012

EDIÇÕES LOYOLA – A Bíblia Teb – São Paulo: Paulinas e Loyola, 1995

FLORES, Josué. Do uso da Bíblia na Igreja hoje. in www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/bibliahermeneutica/do_uso_da_biblia.pdf  . Porto Alegre: CEA – IEAB.

GRACCO TEIXEIRA, Luiz Caetano. Introdução Básica à Liturgia Cristã. In: Revista Inclusividade. Número 6 (p.7-34). Porto Alegre: CEA

HOUAISS, Antonio et al. – Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

MAIZTEGUI GONÇALVES, Humberto. Hermenêutica bíblica. In: Dicionário Brasileiro de Teologia (DBT). São Paulo: ASTE, 2008, p. 470-472.

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___________________________. Bíblia e Anglicanismo.

RICHARD, Pablo. Leitura popular da Bíblia na América Latina (Hermenêutica da Libertação). In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA). Nº 1; p.8-25. Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo: Vozes, Metodista, Sinodal, 1988




[1] O Rev. Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves tornou-se bispo no final do ano de 2012.
[2] Especialista em Linguística Aplicada à Língua Inglesa (UEFS) e estudante de Teologia (SETEK).
[3] A Bíblia TEB, que utilizamos neste trabalho, utiliza a palavra “legista” para significar alguém que possui um extenso conhecimento da lei judaica, pois o termo “legista”, com o significado de “especialista em leis” deriva-se do francês légiste que trouxe o vocábulo do latim (HOUAISS e VILLAR, 2004).  Outras versões da Bíblia utilizam termos como doutor da Lei, legalista, etc. para designar estas pessoas.
[4] Apesar da existência de bispas em vários países que fazem parte da Comunhão Anglicana, a Igreja Anglicana na Inglaterra ainda não admite a ordenação de mulheres ao episcopado.