30 março 2012

CRISTOLOGIA CONTEXTUAL

CRISTOLOGIAS A PARTIR DOS SEUS CONTEXTOS

JESUS CRISTO E OS CONFLITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS, POLÍTICOS E RELIGIOSOS PROVOCADOS PELO PROJETO DO REINO.

Estudar a Cristologia (o sentido messiânico de Jesus “Cristo”, que significa “ungido” ou “messias”) a partir de CONFLITOS é algo relativamente novo na história da teologia. Geralmente, como muitos fazem até hoje, Jesus Cristo é visto como uma figura acima destas “coisas mundanas” ou “relações humanas”. Vemos um “Cristo” muito mais nos “céus” do que na “terra”. No entanto, Jesus está propondo um projeto do Reino não para o céu (onde o Reino já é uma realidade, conforme o Pai Nosso); mas na terra (onde a realidade pede sua transformação à luz da proposta do Reino e da presença viva de Deus em Cristo).
Como ser humano histórico Jesus participou dos conflitos dentro dos limites históricos de sua época. Portanto, este tipo de abordagem cristológica requer, necessariamente, que lembremos como eram as relações econômicas, políticas, sociais e culturais/religiosas do tempo de Jesus. Também, por estar encarnado na história humana, Jesus Cristo não foi entendido de uma única forma, cada comunidade, ou grupo de comunidades, desenvolveu sua cristologia a partir da experiência de vida dos/as apóstolos/as, como veremos nos Evangelhos, depois, ainda, houve uma cristologia desenvolvida na Missão de Deus através do Evangelho de Jesus Cristo.

1.1 Jesus Cristo e seu contexto: a economia na Palestina do século 1º

A Galiléia era a região mais produtiva do território palestinense (produzindo principalmente trigo, cevada, óleo de oliva e vinho)<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->. Também era a região mais tributada pela economia imperial. Não por acaso foi nesta região que iniciaram a maior parte das revoltas contra os romanos, e o próprio movimento de Jesus. A pecuária era pequena e usada quase que exclusivamente para a subsistência (pastores/as eram pobres e mal vistos dentro da sociedade). Dentro da indústria o primeiro lugar era o da CONSTRUÇÃO CIVIL, ela era necessária para o IMPÉRIO e seus ALIADOS tanto para facilitar o comércio quanto para EXALTAR O SEU PODER COM GRANDES PALÁCIOS! O maior promotor disso foi HERODES (o Grande; 37 a 4 a.C.)<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]-->. O próprio templo foi totalmente reconstruído durante seu reinado a custas de muitos impostos e mão de obra escrava.
A pesca também era importante. Ela tinha seu lado popular (usada para a subsistência como alimento de fácil acesso) e seu lado comercial (exportando peixe salgado e defumado). Havia também uma variedade de atividades artesanais que iam desde a fiação e tecelagem, passando pelo trabalho com metais e madeira (da qual participava José e sua família) e chegando à fabricação de jóias e cerâmicas. O ARTESANATO DE LUXO era destinado ao consumo dos ricos tanto na Palestina quanto no exterior<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]-->.
A questão dos tributos aparece seguidamente nos Evangelhos! Especialmente os que eram pagos para o Império (Mc 12,16-17) e os que eram pagos para o templo (Mt 17,24-27). O PROJETO DO REINO LEVA JESUS A CRITICAR a forma como o templo arrecadava dinheiro (Mc 7,11; Mt 15,5; 21,13; 23,18). Também ele criticou o sistema baseado no acúmulo de bens por parte dos ricos (Mc 10,21-23).
A economia imperial, seu comércio e indústria, eram sustentados, principalmente, pelo trabalho ESCRAVO e a cobrança de TAXAS. Também havia grande circulação de dinheiro de várias origens dando trabalho aos CAMBISTAS (que também atuavam no templo de Jerusalém; cf. Mc 11,15-16). Assim, a ESTRUTURA RELIGIOSA usava O MESMO SISTEMA ECONÔMICO DOMINANTE para se SUSTENTAR e, eventualmente, SE ENRIQUECER!
Ser “Cristo” neste contexto atraía a esperança deste povo oprimido de diversas formas. Milagres como quando Jesus alimenta a multidão faminta (que aparece nos quatro evangelhos; cf. Mt 14,13-21 e 15,32-39; Mc 6,30-44 e 8,1-10; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-15), são mostras de uma OUTRA ECONOMIA, a ECONOMIA DO REINO DE DEUS EM CRISTO.

1.2 Jesus Cristo e seu contexto: a sociedade na Palestina do século 1º

A classe alta ou rica ostentava sua posição usando correntes e outras jóias de ouro e realizando grandes festas e banquetes. Também contavam com um número significativo de criados/as. Em geral esta classe era composta por: grandes comerciantes (que exportavam ou importavam de Roma, Ásia Menor e Egito), grandes proprietários rurais (que se enriqueciam com o comércio de grãos, óleo e vinhos), chefes dos cobradores de impostos, sacerdotes do templo de Jerusalém (saduceus), altos funcionários de Roma e oficiais militares de alta patente e governantes locais (quando havia; como Herodes e sua família)<!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]-->. Como vemos, esta classe formava a rede econômica, política e religiosa de sustentação da dominação romana.
A classe media era formada por pequenos comerciantes (às vezes associados aos grandes, às vezes subsistindo apenas do comércio local), artesãos em geral (que, no caso do artesanato de luxo, podiam chegar a ter uma boa vida, mas nunca a pertencer às classes altas), os donos de hospedarias para peregrinos (que também ofereciam banquetes) e os estalajeiros (que cuidavam dos animais das caravanas e eventualmente comercializavam com couro), e os escribas e fariseus (que além de educadores dos meninos das classes medias e altas, elaboravam contratos de matrimônio e outros documentos do tipo, cobrando diversas taxas por sacrifícios e outros serviços de purificação)<!--[if !supportFootnotes]-->[5]<!--[endif]-->.
A classe baixa ou os pobres na Palestina era formada, mormente, por DIARISTAS que eram, nas palavras de J. Jeremias, homens alugados por um rico ganhando um denário por dia, com refeição (tinham mais trabalho nas safras no meio rural ou em atividades específicas – como os caçadores de pombos – no meio urbano). Boa parte do ano estas pessoas ficavam sem trabalho juntando-se aos mendigos. Os ESCRAVOS eram poucos na Palestina, eram muitos mais nas cidades portuárias da Ásia Menor e Grécia. Boa parte dos escravos trabalhava no serviço doméstico, entre eles os eunucos (homens castrados) e outros auxiliares dos mais ricos. Alguns escravos podiam se libertar passando a viver como assalariados<!--[if !supportFootnotes]-->[6]<!--[endif]-->. Aqui também podemos colocar as prostitutas ou “pecadoras da cidade”, que viviam como diaristas do sexo servindo a peregrinos, comerciantes e, eventualmente, a homens ricos. Os governantes tinham suas próprias concubinas, como Herodes e outros<!--[if !supportFootnotes]-->[7]<!--[endif]-->.
Os miseráveis (pobres entre os pobres) eram os mais desprezados como viúvas e órfãos (menores de idade), doentes (cegos, coxos, e, especialmente leprosos e doentes mentais), mendigos em geral. Alguns estrangeiros (peregrinos pobres ou migrantes) podiam ser incluídos eventualmente neste grupo.
JESUS nasce e vive como pobre! ELE PROCLAMA QUE O REINO É DOS POBRES E QUE A BOA NOVA É PRIMEIRAMENTE ANUNCIADA PARA AS PESSOAS EMPOBRECIDAS! (Mt 5,3 e Lc 6,20; Mt 11,3-5 e Lc 4,18; entre outros).

1.3 Jesus Cristo e seu contexto: os partidos políticos e religiosos da Palestina do século 1º

Na Palestina da época de Jesus havia movimentos e partidos que, ora tinham uma ênfase mais religiosa com desdobramentos políticos (como os Saduceus, Fariseus e Essênios), ora tinham uma ênfase mais política com desdobramentos religiosos (como os Sicários, Zelotas, Herodianos e Romanos), ora transitavam entre uma e outra como os movimentos de João Batista (cf. At 5,36-38). Os Romanos eram o poder dominante e atuam em associação com os seus apoiadores locais.
Jesus forma um movimento na Galiléia que era um local ligado a rebeliões contra Roma (Atos 5:35-37). Entre os discípulos há um chamado “zelote” (Mc 3:18). Ele é acusado de ser contra César e contra o Templo de Jerusalém (Lc 23:2). O fato de Jesus ser chamado de Nazareno ou Galiléu (coisa que ele nunca negou) o colocava como potencial inimigo do Império e seus aliados locais, pois a Galiléia era um local onde tinham surgido diversas rebeliões (cf. Atos 5,35-37; Mt 2,23 e Jo 1,46). Ele opõe a lógica do poder de servir, à lógica do poder de dominar (Mc 10,42).

1.4 Jesus Cristo e seu contexto: A vida religiosa na Palestina do século 1º

A vida religiosa gira em torno de três estruturas básicas: o Templo de Jerusalém, as Sinagogas e os Lugares Sagrados. Estas três estruturas representavam religiosidades diferentes.
<!--[if !supportLists]-->· <!--[endif]-->O TEMPLO DE JERUSALÉM
O povo simples se relacionava com o templo a partir de rituais e sacrifícios (determinados pela Lei ou Toráh; cf. Lc 2,22-24; 41-42). Todo esse relacionamento inclui também as oferendas pagas por todos, desde os mais humildes aos mais ricos (Mc 12,41-44). Segundo explica J. Jeremias:
“Três festas de peregrinações eram celebradas a cada ano (...) o Templo de Jerusalém era a pátria do culto judaico, lugar da presença divina na terra (...) as orações chegavam mais diretamente aos ouvidos do Senhor (...) da diáspora chegavam também peregrinos para as festas (..) prosélitos integrados deviam vir em peregrinação, para as festas (...) os semi-prosélitos (...) pagãos incircuncisos, os ‘tementes de Deus”<!--[if !supportFootnotes]-->[8]<!--[endif]-->.
Havia no templo de Jerusalém, diversos tipos de rituais sacrificais. Todo dia era feito o “sacrifício perpétuo” de Israel, sendo dois cordeiros, um pela manhã e outro pela tarde. A aliança com Império determinada que um dos cordeiros fosse imolado em favor de Cesar (mesmo que aqui não fosse considerado “deus”). Durante o dia são oferecidos sacrifícios privados<!--[if !supportFootnotes]-->[9]<!--[endif]-->, além de diversas orações (profecias), debates sobre a lei e pagamentos de “votos”, que aconteciam nos átrios externos acessíveis a todas as pessoas (cf. Lc 2,25-27.36-37; At 21,24). Jesus critica a estrutura religiosa do templo, pois tinha virado um instrumento de exploração das pessoas mais pobres (Mt 23,16; Mc 12,38-44). Ele mesmo se apresenta como “a pedra que os construtores rejeitaram” e fala na destruição do Templo (Mc 12,10 e 15,29).
<!--[if !supportLists]-->· <!--[endif]-->A SINAGOGA
A palavra deriva-se do grego “sünago”, que significa “reunir”. A pesquisa arqueológica não achou nenhum prédio que pudesse ser identificado com uma “casa de oração” antes da segunda metade do século 2º. Portanto, a sinagoga era mesmo a reunião dos homens judeus (em um número não inferior a 10), que, como em uma associação escolhiam um “presidente” ou “chefe” (Mc 5,22 e paralelos). Portanto era uma organização leiga que oferecia espaço para “rabis” (mestres), “doutores da lei” (fariseus e escribas) ensinar. A reunião iniciava com a proclamação do Shemá (Credo; cf. Dt 6,4-9;11,13-21; Nm 15,37-41), depois havia uma leitura da Toráh (Lei/Pentateuco); depois uma dos profetas; podendo (ou não) haver uma pregação<!--[if !supportFootnotes]-->[10]<!--[endif]-->. Jesus ensina em diversas sinagogas (Mc 1,21). Na sinagoga da sua cidade Nazaré, no entanto, é violentamente rejeitado (Lc 4,16.28-29).
<!--[if !supportLists]-->· <!--[endif]-->OS LUGARES SAGRADOS
Este é um assunto novo que os estudos, até hoje, não deram muita importância. No entanto, eles aprecem como espaços de liberdade de culto popular ao ar livre! Existem diversos em todo o Primeiro Testamento. No Segundo Testamento o que continua com grande relevância é o rio Jordão! (cf. 2 Rs 5,1-14; Mc 1,5 e paralelos). Não esqueçamos que foi no rio Jordão que Jesus foi revelado por Deus como seu Filho! (cf. Mc 1,9-11; e paralelos).
Os montes era outro lugar preferencial para o encontro com Deus (quase que templos naturais). Há inúmeros exemplos no Primeiro Testamento (sendo o monte Sinai/Horebe o mais famoso; cf. Êx 3 e 6). Jesus recorre a estes lugares santos para orar e para ensinar (Mc 6,46; 9,2; Mt 5,1; 15,29). Fariseus e escribas às vezes compareciam nestes lugares para fiscalizar (cf. Mt 3,6-7).

1.5 A presença de Jesus Cristo e a proposta do Reino no meio dos conflitos da época de Jesus

A pergunta cristológica feita pelo próprio Jesus é: “Quem dizem que sou?...E vocês quem dizem que sou?” (Mt 16,13.15; Mc 8,27.29; Lc 9,18.20). E essa pergunta que ecoa até nós hoje, tem a ver profundamente com o contexto de Jesus e com o projeto do Reino. Conforme as pessoas se posicionavam a favor das classes empobrecidas ou excluídas, conforme eram a favor ou contra a religião “vendida” ao império ou contra ela, conforme se identificava apenas com o “culto oficial” no Templo ou estavam abertas a outras formas de revelação e adoração a Deus, é que tinham mais ou menos sensibilidade ou abertura para reconhecer o Cristo. A Cruz é o sinal explícito da forma como os setores dominantes da sociedade viram o projeto e a identidade messiânica de Jesus.


2. A construção cristológica nos Evangelhos

Os Evangelhos não são os textos que foram primeiramente redigidos no Segundo Testamento, antes vieram as cartas do apóstolo Paulo. Acontece que enquanto os apóstolos (e apóstolas) estavam vivos se confiava em um rápido retorno de Jesus (como claramente se diz em Mc 9,1). Foram as perseguições, e a morte das testemunhas oculares, que motivaram, em um primeiro momento a sistematização de uma cristologia narrativa (construída através da memória das palavras e atos de Jesus Cristo).
Portanto, não temos uma cristologia única, nem nos evangelhos, nem no Segundo Testamento. Há diversas sistematizações motivadas pela memória comunitária em diferentes contextos, e pela ação missionária apostólica em ainda outros contextos. Podemos dizer então que é possível conhecer uma cristologia? Sim, é possível, porque há uma unidade nesta diversidade! Justamente, esta será a tarefa da reflexão cristológica, buscar elos, princípios, orientações, constatações, convergências, que nos revelam Jesus Cristo, como ser histórico e como gerador de um novo entendimento da relação divino-humana a partir da base da revelação hebréia-israleita-judaica.

2.1 A Cristologia das comunidades Marcos a partir da primeira perseguição em 64 d.C.

O Evangelho segundo Marcos é bem resumido, mostra que houve certa URGÊNCIA em SISTEMATIZAR A MEMÓRIA. A razão disso foi a primeira GRANDE PERSEGUIÇÃO contra a Igreja perpetrada por NERO, após o INCÊNDIO DE ROMA (ano 64).
Neste contexto questão da DIVINDADE DO CESAR é uma questão central da cristologia deste Evangelho! Quem é Jesus e quem é Cesar? Euclides Balancin nos diz: “Ao confessar que Jesus é o Filho de Deus, Marcos nos leva a ver no homem Jesus a presença de Deus (...) desmascarando simultaneamente outros ‘homens divinos’ e suas práticas (...) O Evangelho é subversivo desde o título”<!--[if !supportFootnotes]-->[11]<!--[endif]-->. Mas, a questão de quem é Jesus é recorrente no Evangelho (1,10-11; 3,11; 5,7; 8,29; 9,41; 10,24; 14,62). De todas elas a manifestação mais significativa é a de 15,39 quando um oficial romano (representante do Cesar e seu aparelho de repressão e morte) declara que “na verdade este homem era o Filho de Deus”!
O pedido de Jesus de manter “segredo” sobre seu caráter divino (Messias/Cristo) e sobre os milagres realizados (Mc 1,44; 5,43; 7,36; 8,30; 9,9), até o momento da Cruz-Ressurreição, pode parecer contraditório em um Evangelho que pretende afirmar a divindade de Jesus, como Cristo, e desmascarar a divindade de Cesar. No entanto, este pedido é característico deste Evangelho!
Tudo indica que a perseguição trouxe problemas internos na comunidade de Marcos. Certamente, diante da morte de irmãos e irmãs na fé e de importantes lideranças apostólicas, haveria quem se perguntasse: será que Cristo não é diferente do que acreditamos? Neste tempo havia diferentes “messianismos”; daí a advertência em relação àqueles que dizem que Cristo está aqui ou ali (cf.13,6.21-22). A advertência é feita diante de um contexto de perseguição e morte! E nesse momento que aprecem as “saídas fáceis” e os falsos messias. O segredo indica o CUIDADO QUE SE DEVE TER NO ANUNCIO DE CRISTO, não é que este anúncio deva ser feito apenas por pessoas “autorizadas”, mas que deve ter como REFERÊNCIA OBRIGATÓRIA A CRUZ-RESSURREIÇÃO! Cesar e outros podem “pousar” de “divindades” ou “messias”; mas nenhum deles venceu a morte, pelo contrário, são assassinos ou cúmplices! O SEGREDO MOSTRA QUE A VERDADE SE REVELA QUANDO A VIDA VEM PRIMEIRO QUE A PALAVRA, o que é algo essencial para um EVANGELHO DA RESISTÊNCIA COMO O DE MARCOS!
Certamente a Cruz/Ressurreição é o centro da cristologia de Marcos, pois neste binômio fica plenamente revelada a humanidade/divindade de Cristo.

2.2 A cristologia das comunidades de Mateus a partir da destruição de Jerusalém em 70 d.C.

O Evangelho segundo Mateus é, em primeiro lugar, uma grande releitura do Evangelho segundo Marcos (citando aproximadamente 90% dele). No entanto, as comunidades de Mateus vão muito além. A primeira novidade cristológica são as histórias sobre as origens de Jesus (genealogia, família, dificuldades durante a infância e adolescência). Mas, de onde veio a necessidade de colocar novas ênfases?
O Evangelho segundo as comunidades de Mateus responde a uma nova perseguição que é conseqüência da chamada “grande revolta judaica” contra Roma, nos anos próximos a 70. A revolta mostra que a fé cristã não era a única a discordar da PAX ROMANA (a paz imposta pela força militar). Mas, enquanto o Evangelho de Cristo visava a ABERTURA do seu REINO para todas as pessoas (mesmo que começando por Israel) a proposta NACIONALISTA JUDAICA visava o FECHAMENTO POLÍTICO E RELIGIOSO. Portanto, o Evangelho apresentado pelas comunidades de Mateus quer mostrar uma cristologia que diferencia a pessoa e proposta de Jesus Cristo tanto do imperialismo romano repressor e assassino (daí sua forte conexão com Marcos) quanto do nacionalismo violento e intolerante que prevalecia na Palestina (eis aqui a novidade). Segundo explica Ivo Storniolo,
O Jesus de Mateus é, portanto, o Mestre da Justiça (...) sua presença, palavra e ação (...) ensinando a comunidade a lutar pela justiça que liberta a todos para uma vida digna (...) para que todos aprendam de Jesus qual é a justiça que Deus quer<!--[if !supportFootnotes]-->[12]<!--[endif]-->.
Quer dizer, Jesus é fonte da verdadeira justiça capaz de gerar vida e não violência e morte. Da mesma forma que César tem seu reino, e como o nacionalismo judaico queria ter um rei, Jesus apresenta seu Reino, como um lugar onde há espaço para todas as pessoas que sofrem e onde se vive a Justiça:
Reino dos Céus ou Reino de Deus tem que ser lido como anúncio ameaçador ao Reino de Roma(...) o reinado do Messias era pôr em dúvida o reinado do Imperador romano (...) A conseqüência imediata era a conclusão do caráter ilegítimo do sistema tributário romano (...) a conseqüência política era o derrubar da ideologia do estado romano (...) sendo o imperador o objeto desse culto (...) era, no mínimo, uma prática subversiva, passível de perseguição<!--[if !supportFootnotes]-->[13]<!--[endif]-->
A cristologia mostrada na GENEALOGIA DE MATEUS mostra esta proposta alternativa do Evangelho. Jesus é chamado, logo no primeiro versículo, de “Filho de Davi, Filho de Abraão”. Estas são as duas referências essenciais para o judaísmo nacionalista! Filho de Davi porque este rei era o portador da promessa permanente do reinado sobre Israel (2 Sm 7,16). Filho de Abraão por estar ligada a ele a origem de toda família israelita (Gn 12,1-3). No entanto, esta família é composta de mulheres estrangeiras ou transgressoras que Mateus faz questão de mencionar: Tamar (que se disfarçando de prostitua obrigou seu sogro a ter um filho com ela para conseguir seu lugar na descendência, cf. Gn 38,15.26); Raabe (uma prostituta de Jericó que se aliou as tribos de Israel contra o rei local ajudando a tomar e destruir a cidade; cf. Js 2,1); Rute (uma mulher moabita que por seu grande amor ficou e resistiu junto a sua sogra Noemi, após ambas ficarem viúvas e na miséria, seduzindo um parente de Noemi e conseguindo assim os seus direitos, cf. Rt 1,16). De certa forma a humanidade de Jesus inclui todos os povos e todas as pessoas.
Outra contribuição de Mateus está no episódio dos magos de oriente e seu desfecho no massacre das crianças em Belém, com a fuga da família de Jesus para o Egito e seu retorno após a morte de Herodes, o Grande (Mt 2). De novo aqui Mateus associa Cristo a uma esperança universal e não apenas nacional! Por outro lado, a reação de Herodes mostra como os “nacionalismos” e os “imperialismos” são cruéis, despóticos, mentirosos e assassinos!
A divindade de Cristo, revelada logo no batismo de João (como é apresentado em todos os evangelhos) e ganha um título exclusivo de Mateus: “Emanuel” (Deus-conosoco), citando o profeta Isaías (Mt1,23; cf. Is 7,14;8,8.10). A comunidade de Mateus também adota a denominação “filho do ser humano” Parece que este título não foi usado, segundo Joachim Jeremias, pelo próprio Jesus, mas atribuído depois a ele. A ocorrência deste título é maior em Marcos, que deve ter originado esta tradição (14 vezes), depois adotada e desenvolvida por Mateus (17 vezes, contando os casos comuns com Lucas e os próprios)<!--[if !supportFootnotes]-->[14]<!--[endif]-->. O uso de “filho do ser humano” está ligado a discussão de questões de autoridade como: o perdão dos pecados (9,6); o Sábado (Mt12,8); a inclusão das crianças (18,11); o trabalho missionário (13,37), etc. Desta forma Jesus transfere a divindade para a humanidade, nos fazendo participantes de Deus! Por outro lado questiona aqueles que, como César, queriam se apropriar exclusivamente da divindade, ou aqueles que, como as autoridades judaicas e alguns grupos gnósticos, não conseguiam ver a divindade agindo plenamente na humanidade.
Mateus, no seu discurso contra os fariseus e escribas, no capítulo 23 inclui uma demanda cristológica, ao se opor a apropriação indevida que romanos e autoridades judaicas faziam de dois títulos: Senhor e Mestre.
Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos. E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus. Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo (Mt 23,8-10).
Cristo em Mateus é a verdadeira alternativa! Alternativa ao que se dizendo “mestres” do povo o enganam e exploram. Alternativa ao que se apresentando como “pais” do povo o abandonam e maltratam. Alternativa ao que pretendem guiar o povo, mas na verdade os conduzem para a morte! Ele tem todo o poder e o reparte com todos os povos, sem exclusão e sem violência, através do seguimento e do discipulado (Mt 28:16-20).

2.3 A cristologia nas comunidades de Lucas: Cristo Libertador como caminho de inclusão social e econômica.

Como falamos desde o começo este Evangelho volta-se para o interior das comunidades. A diferença de Marcos e Mateus, os romanos não são, no momento, o problema maior. Quais as principais questões que preocupam as comunidades onde Lucas transita?
<!--[if !supportLists]-->· <!--[endif]-->São predominantemente formadas por “gentios” (isto é, pessoas que não eram originárias da fé judaica).
<!--[if !supportLists]-->· <!--[endif]-->Alguns soldados romanos (inclusive oficiais como Cornélio; cf. At 10).
<!--[if !supportLists]-->· <!--[endif]-->Havia grupos de judeus convertidos que Lucas chama de “legalistas” ou “doutores da lei” (em grego nomikós) que, em algumas comunidades, discriminavam as pessoas originárias de gentilidade e, dentro deste grupo, as mulheres (Lc 7,30; 10,25; 11,45s.52.53; 14,3).
<!--[if !supportLists]-->· <!--[endif]-->Havia profundas diferenças sociais, com pobres muito pobres e ricos muito ricos (que tendiam a ignorar completamente os pobres, cf. Lc 16,19-21).
Lucas quer mostrar, através da pesquisa feita nas comunidades de Antioquia e Ásia Menor (especialmente no Evangelho), que a superação das exclusões, discriminações e preconceitos é essencial para o seguimento de Cristo! Os textos exclusivos de Lucas mostram isso insistentemente! Além da parábola do rico e Lázaro (já citada acima), temos o caso da prostituta e o fariseu Simão (em Lc 7,36-50) que reúne diversos os tipos de exclusão: por gênero, por classe e por prática religiosa (pureza/impureza; piedade/pecado). Outra famosa parábola exclusiva de Lucas é a do “Bom Samaritano” (Lc 10,30-37), que não só exalta a fé solidária como verdadeira prática do Evangelho, mas denuncia a prática hipócrita dos religiosos legalistas (o sacerdote e o levita).
Lucas também chama a atenção pela valorização da participação das mulheres (inclusive de origem gentílica) no ministério de Jesus (Lc 8,1-3). Segundo Zenilda Petry, Lucas:
É quem mais cita mulher. É Lucas também que melhor apresenta a figura de Maria, Isabel, dentre tantas outras (...) Na cultura grega a mulher sofre marginalização. Ela é considerada inferior ao homem (...) há diversas referências à mulheres doentes, pecadoras, idosas, estéreis, viúvas e portadoras de espíritos imundos (...) do ponto de vida econômico-social (...) são mulheres pobres e marginalizadas (...) É inegável também que tem uma certa tensão e ambivalência(...) a respeito do papel da mulher (...) É preciso contudo uma leitura crítica da afirmação de que Lucas é o Evangelista das mulheres (...) Lucas distingue dois grupos: os ‘Doze’ e as ‘mulheres’ (...) a função das mulheres é de serviço e cooperação. Elas acompanham o grupo, são suas colaboradoras<!--[if !supportFootnotes]-->[15]<!--[endif]-->.
Neste sentido temos que nos voltar para a cristologia apresentada pelos pobres e pelas mulheres. Logo os primeiros capítulos de Lucas dão grande importância a Maria e Isabel. O Cântico de Maria (Lc 1,46-79) é um manifesto profético que retoma a tradição de mulheres como Miriam (Êx 15,20-21); Débora (Jz 5) e principalmente Ana (I Sm 2,1-10)! Cristo é, neste canto, o Senhor da Justiça, o Libertador dos pobres! O mesmo vai afirmar Lucas quando resgata a leitura do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré (Lc 4:18-21; cf. Is 61,1-3).

2.4 A nova cristologia joanina: e o Verbo se fez Carne na nossa história!

A nova cristologia de João tem por objetivo reunir as comunidades divididas por terem diferentes formas de entender Cristo. Para isso se vale de dois elementos que apresenta logo no começo do Evangelho: a pré-existência do Verbo, e a encarnação do Verbo (João 1,1-14). Dizer que Jesus existia em Deus na forma de “logos” (Palavra e Sentido), antes da criação do mundo e que tudo por Ele foi criado, é mais radical afirmação da divindade de Cristo! Por outro lado, dizer que este ser perfeitamente divino que “estava com Deus e era Deus” (Jo 1,1) se fez “carne” (em grego sarx, que é diferente de “corpo” em grego soma), é a mais radical afirmação da humanidade! Esta declaração da UNIDADE divino-humana tem depois desdobramentos simbólicos na união de Cristo com o Pai e na união de todas as pessoas que o reconhecem como divino e humano (Jo 17,21).
Enquanto nos Evangelhos Sinóticos (Mt, Mc e Lc) a palavra Pai aparece poucas vezes, em João aparece 100 vezes! Portanto, outra coisa importante na cristologia joanina é nos tornar irmãos e irmãs de Cristo e sermos irmãos e irmãs entre nós! Por isso no Evangelho segundo João se deixa um novo mandamento: Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis” (Jo 13:34).
A busca pela UNIDADE faz com este evangelho, a diferença dos outros, tenha uma CRISTOLOGIA EXPLÍCITA, isto é, Jesus não pergunta “quem dizem que sou” (Mc 8,27 e paralelos), Jesus diz: “Eu Sou...” (6,51; 10,14; 15,5). Este “Eu Sou” pode ser equiparado à revelação do nome de Deus a Moisés (Êx 3,14). Revelando assim que Jesus é a encarnação do Deus Libertador! Cristo se apresenta claramente: nos chama, nos reúne e nos envia!

<!--[if !supportLists]-->2. <!--[endif]-->Cristologia paulina: Cristo como Evangelho para todos os povos.

No livro intitulado “De Jesus a Paulo”, Joseph Klausner (professor da Universidade Hebraica de Jerusalém), começa citando Julius Wellhausen, que afirmou: “Jesus não era um cristão, ele era um judeu”. Segundo o autor não se trata de uma frase leviana, mas foi fruto de décadas de pesquisa<!--[if !supportFootnotes]-->[16]<!--[endif]-->. Não resta dúvida, para qualquer pessoa que realize uma pesquisa sincera e profunda, que nunca foi intenção de Jesus formar “uma nova religião e proclamá-la fora da nação judaica”<!--[if !supportFootnotes]-->[17]<!--[endif]-->.
As recomendações para a missão dos 12 no Evangelho segundo Mateus: “não tomeis o caminho dos pagãos e não entreis numa cidade de samaritanos”, o princípio levantado no debate com a mulher siro-fenícia, segundo Mateus : “Fui enviado apenas às ovelhas perdidas de Israel “(Mt 15,24;omitido em Mc 7,24s); o fato das primeiras comunidades continuarem a freqüentar assiduamente o Templo de Jerusalém (At 2,46); da fé receber como primeiro nome “O Caminho” (At 9,2 e 19,23) e finalmente as profundas controvérsias causadas pela dispensa da circuncisão e outras obrigações da lei judaica para os convertidos originários de outras nações (At 15); podem indicar que Jesus era um messias dos judeus e para os judeus, e, se estendido para outros povos, seria nada mais do que a continuidade do judaísmo.
Algo semelhante pode se encontrar na estratégia missionária do apóstolo Paulo. Ele vai ir primeiramente às sinagogas da diáspora e ele ainda participa em cerimônias de conclusão de votos no Templo, por recomendação de Tiago e outros cristãos de Jerusalém, para eliminar os boatos que o colocavam como “inimigo da Lei de Moisés” (segundo At 21,23-24). Possivelmente, o próprio apóstolo não tinha a intenção de criar uma religião independente (cf. At 9,20, entre outros).
Contudo, o afastamento progressivo entre a teologia da “Igreja de Deus” através do Evangelho proclamado por Paulo e o judaísmo é evidente (1 Cor 10,32). Segundo Joseph Fitzmyer, quando Paulo fala em “meu/nosso evangelho” (Rm 2,16,16-25; 1 Ts 1,5; 2 Ts 2,14 e 2 Cor 4,3; cf. 1 Cor 15,1) nada indica que esteja anunciando algo exclusivo ou pessoal, muito pelo contrário, “Paulo conhece um único Evangelho (Gl 1,6)” e “para ele Jesus Cristo é o Evangelho”. No entanto, quando Paulo usa o termo “meu evangelho” refere-se, sim, a “uma graça especial da missão que lhe fora confiada”, até a prisão foi para ele é uma “graça” (Filemon 1,7.16)<!--[if !supportFootnotes]-->[18]<!--[endif]-->.
Kaesemann, com quem concordamos neste aspecto, aponta para o fato de que se for retirado o sentido dialético e claramente oposto à teologia legalista judaica, toda a doutrina da justificação em Paulo fica esvaziada, seria, segundo ele, como retirar o caráter escandaloso da pregação de Jesus em sua oposição ao Templo ou mesmo a sua Cruz: “sem sua combatividade – diz o autor – ela se paralisa” e pergunta: “Quem é representado pelo legalismo judaico, contra o qual Paulo se voltou?” E logo responde que o rejeitado por Paulo e sua teologia é aquele “transformou as promessas de Deus em privilégios pessoais e os mandamentos de Deus, em meios para a própria justificação”<!--[if !supportFootnotes]-->[19]<!--[endif]-->.
Paulo certamente é movido pela convicção interior, de que o judaísmo é bom e que nele há salvação. Ele não rejeita as tradições judaicas, mas baseia sua argumentação na fé de Abraão (Rm 4). Ele também se coloca do lado do “judaísmo” quando afirma:
Porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado de Cristo, por amor de meus irmãos, meus compatriotas, segundo a carne. São israelitas. Pertence-lhes a adoção e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas; deles são são os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o que é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém! (Rm 9.3-5)
A salvação universal promovida pela fé e pela graça não era uma “saída” ou uma “alternativa” ao judaísmo, mesmo que lhe fosse altamente ofensiva, como afirma Robin Scroggs “que mais ofensivo que Deus igualar todos (Rm 5.18)” e ainda “quando Paulo diz que Deus justifica só pela graça mostra a radicalidade de uma libertação última, de uma ofensa última (...) ofensivo porque todos os padrões morais importantes para o mundo são derrubados”<!--[if !supportFootnotes]-->[20]<!--[endif]-->.
Paulo queria compartilhar com seu povo judeu aquela libertação que ele recebeu, aquela que o libertou de ser um religioso intolerante, violento, perseguidor, destruidor, auto-confiante, e o levou a descobrir o ser humano livre, mesmo que pecador, com uma vida plena de sentido, mesmo que em conflito com as forças da morte, poderoso em Cristo, mesmo que fraco e limitado em si mesmo, com pouco tempo para fazer tudo o que gostaria, mas com seu olhar na eternidade (cf. Rm 6.23; 1 Cor 15.55-56; 2 Cor 4.7-15; etc.).
Para Paulo, afirma Fitzmyer, “o evangelho de Deus (1 Ts 2.2,8,9; 2 Cor 11.7; Rm 1.1,15,16) é também ‘dom’ e ‘graça’ de Deus (2 Cor 9.14-15). Ouvimos o próprio Paulo dizer:
Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.(1 Cor 1,23-25).
A mesma ação da graça que o levou para a transformação, que extrapolou os estreitos limites da intolerância e do legalismo socio-religioso, fazem de Paulo um apóstolo da inclusividade e do diálogo franco dentro e fora do judaísmo, que até hoje escandaliza os mais “ortodoxos”:
A visão de Paulo, que a morte de Jesus é o pagamento por todo o mundo, não só pela espécie humana (...) que está gemendo à espera de seu redentor pode ser prazenteira, sublime e poética. Mas, mesmo sendo na sua essencia construída sob bases judaicas, é pagã, e tem o odor das religiões de mistério dos gregos, egípcios, persas e dos povos pagãos da Ásia Menor – de Dioniso, Isis, Osíris, Atis e Mitras. Por isso o judaísmo não pode aceitá-lo!<!--[if !supportFootnotes]-->[21]<!--[endif]-->.
Alguns atribuem a “mistura” de elementos do pensamento grego em Paulo à sua formação anterior. Não podemos negar que a formação anterior de Paulo ofereceu, assim como a formação judaica, elementos para este diálogo. No entanto, trata-se de uma mera influência de linguagem ou de uma verdadeira incorporação de elementos “mais tolerantes” e “mais inclusivos” da cultura grega para a descoberta de um Evangelho amoroso e inclusivo de Cristo, através da ação da sua graça?
J. Louis Martyn fazendo uma revisão de uma obra de Hyam Maccoby intitulada “O fazedor de mitos: Paulo e a invenção do cristianismo” (The Mythmaker: Paul and the Invention of Christianity) defende que Paulo “nasceu gentio e nunca se tornou um fariseu (...) de Tarso ele foi para Jerusalém com o firme desejo de ser um judeu”<!--[if !supportFootnotes]-->[22]<!--[endif]-->. Assim Paulo, decepcionado e violentado interiormente pelo nacionalismo farisaico e pela perseguição contra os “nazarenos” teria visto a saída de fundar uma nova religião. O próprio autor. Martyn, avalia que esta visão de Maccoby é exagerada, no entanto, admite que foi dada uma grande contribuição ao entendimento de Paulo ao se incluir no estudo elementos das religiões comparadas<!--[if !supportFootnotes]-->[23]<!--[endif]-->. Vejam o que diz Cranfield se referindo ao entendimento paulino sobre o batismo:
A opinião segundo a qual Paulo foi profundamente influenciado na sua compreensão do batismo (...) pelos cultos contemporâneos dos mistérios gentílicos, foi bastante amplamente sustentada. Era característico destes cultos o fato de que um traço de importância central era a morte e ressurreição do deus adorado e que os ritos de iniciação suponha-se que realizavam a união da pessoa, que estava sendo iniciada com deus (...)<!--[if !supportFootnotes]-->[24]<!--[endif]-->.
Haveria, então, na teologia da graça em Paulo alguma base para o diálogo não só ecumênico (no sentido inter-denominacional), mas macro-ecumênico (no sentido inter-religioso)? O que Paulo quis dizer quando afirmou?
Porque ainda há também alguns que se chamem deuses, quer no céu quer na terra, como há muitos deuses e muitos senhores, todavia, para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas e para quem existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são também todas as coisas e nós também por ele (1 Cor 8.5-6).
Mesmo que, inicialmente ele esclareça sua perspectiva ao dizer: “que se chamem”, a frase termina afirmando: “há muitos deuses e muitos senhores”. Isso certamente contrasta com a afirmativa de Deutero-Isaías (reagindo contra o Império Persa): “Eu sou o Javé, e não há outro; além de mim não há Deus”(Is 45,5; cf. 45,6.14.18.22 e 46,9). É claro que Paulo reafirma a fé “para nós” (cristãos), mas será que ele admite a diversidade para os outros?
O próprio Lucas coloca Paulo apresentando Jesus Cristo para os atenienses como um dos “deuses” do seu panteão (At 17,22-23) e, ao ser acusado de falar contra a imagem de Ártemis, em Éfeso, seus defensores afirmam que ele não falou em nenhum momento contra a fé na deusa (At 19,35-37). Paulo como cidadão do mundo greco-romano admitia viver dentro de uma diversidade religiosa e cultural na qual ninguém era superior ou mais apto para aceder à graça de Deus (Rm 3.9-10,21-27)! Assim, os elementos helenísticos, como alguns dos dons do Espírito Santo, entre eles a glossolalia, que provêm da cultura religiosa dos gentios, são incorporados espontaneamente (de forma inculturada e interreligiosa) e logo são reconhecidos por Paulo como a legítima ação de Deus através do Espírito Santo (1 Cor 14.1-5; considerando que o dom da profecia ao qual se refere Paulo está muito mais próximo da prática dos oráculos gregos do que do profetismo do Primeiro Testamento).
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<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> Joachim JEREMIAS. Jerusalém no tempo de Jesus, pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário (p.20). São Paulo: Paulinas, 1983.
<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]--> Christiane SAULNIER. A Palestina nos tempos de Jesus (p.30-31). São Paulo: Paulinas: 1983.
<!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]--> Joachim JEREMIAS. Jerusalém no tempo de Jesus, pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário (p.138-143). São Paulo: Paulinas, 1983.
<!--[if !supportFootnotes]-->[8]<!--[endif]--> Joachim JEREMIAS. Op. Cit.,p.108-111.
<!--[if !supportFootnotes]-->[9]<!--[endif]--> Christiane SAULNIER. Op. Cit.,p.39-44.
<!--[if !supportFootnotes]-->[10]<!--[endif]--> Werner Georg KÜMMEL. Introdução ao Novo Testamento (p. 116). São Paulo: Paulinas, 1982.
<!--[if !supportFootnotes]-->[11]<!--[endif]--> Euclides Martins BALANCIN. Como ler O Evangelho de Marcos, quem é Jesus? (p.13). São Paulo: Paulus,1991.
<!--[if !supportFootnotes]-->[12]<!--[endif]--> Ivo STORNIOLO. Como ler O Evangelho de Mateus, o caminho da justiça (p.15). São Paulo: Paulinas,1990.
<!--[if !supportFootnotes]-->[13]<!--[endif]--> Paulo LOCKMANN. Uma leitura do Sermão do Monte (Mateus 5-7); p. 53-54. In: RIBLA 27 (p.7-9). Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1997.
<!--[if !supportFootnotes]-->[14]<!--[endif]--> Joachim Jeremias. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1977 (p.393-394).
<!--[if !supportFootnotes]-->[15]<!--[endif]--> Zenilda Luiza PETRY. O papel da mulher em Lucas. In: Estudos Bíblicos 47 (p.15-23). Petrópolis/São Leopoldo: Vozes/Sinodal, 1995.
<!--[if !supportFootnotes]-->[16]<!--[endif]--> Joseph KLAUSNER. From Jesus to Paul, p.3.
<!--[if !supportFootnotes]-->[18]<!--[endif]--> Joseph A. FITZMYER. Linhas fundamentais da teologia paulina, p.41-42.
<!--[if !supportFootnotes]-->[20]<!--[endif]--> Robin SCROGGS. Paul for a new day, p.15-17.
<!--[if !supportFootnotes]-->[21]<!--[endif]--> Joseph KLAUSNER. From Jesus to Paul, p.526.
<!--[if !supportFootnotes]-->[22]<!--[endif]--> J. Louis MARTYN. Theological issues in the letters of Paul, p.70-71.
<!--[if !supportFootnotes]-->[24]<!--[endif]--> CARNFIELD. Carta aos Romanos, p. 130 (comentando Rm 6.3).
Revdo. Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves (humbertox@uol.com.br)

Páscoa, anuncio da vitória da Vida!