1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho é um estudo
sobre as visões que se tem da Bíblia Sagrada, privilegiando o enfoque dado pela
Leitura Popular da Bíblia, o qual se
configura em uma abordagem exegética utilizada no âmbito da Teologia da
Libertação ou Hermenêutica da Libertação, que se configura na opção
preferencial pelos pobres e excluídos. Ele foi produzido como última avaliação
da disciplina Introdução à Bíblia,
ministrada pelo Rev. Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves[1],
no curso de Teologia à Distância mantido pelo Seminário Teológico Dom Egmont
Machado Krischke (SETEK).
Em nossa abordagem, utilizamos como
referências básicas textos do próprio Rev. Maiztegui, do Frei Carlos Mesters e
de Pablo Richard, além da Bíblia Sagrada. Estes teólogos demonstram de maneira
aprofundada e em linguagem acessível reflexões sobre os caminhos por onde andou
a exegética, distanciando a Palavra de Deus das pessoas e aproximando-a de
grupos que mantiveram seu predomínio econômico-social ao longo de tempo.
Abraçar a Teologia da Libertação não
é uma atitude fácil, uma vez que ela pode levar a uma série de conflitos com os
próprios grupos comunitários com os quais se inicia o trabalho. Isto é verdade,
especialmente, caso o trabalho seja direcionado para uma atuação mais político-partidária,
uma vez que uma radicalização desta ação possa levar a divisões internas dentro
da Igreja, causando incompreensões de lado a lado.
Um trabalho consciente é feito na
dosagem certa e colherá, assim, melhores resultados. Se o objetivo é que as
pessoas escutem a “fala de Deus”, então que se examine criticamente o
direcionamento que se está tomando para saber se o projeto que se está seguindo
é divino ou puramente humano.
2.
BÍBLIA:
FONTE DE VIDA E DA LITURGIA
Rita
de Cássia Silva Sacramento[2]
Deus não emudece pelo fato de se ter
fechado o cânon bíblico. Deus continua vivo e conosco e, se é um Deus vivo, é
um Deus que fala, um Deus que se revela e comunica.
Pablo
Richard
Uma
das poucas afirmações feitas pelos cristãos de todas as denominações religiosas
é a de que a Bíblia é fonte de vida e contém as verdades essenciais para a
salvação dos fiéis. Esta afirmação, no entanto, não recebe nas diferentes
Igrejas existentes a mesma conceitualização: o que é ser fonte de vida? Para
alguns, é ser um caminho iniciado por Deus com seu povo e que tem o objetivo de
realização de um projeto que é a implantação do Reino de Deus entre nós. Para
outros, é ser um manual de instruções em que regras são ditadas para que as
pessoas possam colocá-las em prática e serem merecedoras da salvação. Para
outros ainda é dar o conhecimento de como adorar corretamente a Deus,
entregando a Ele sua vida através do desligamento “das coisas do mundo” para
beneficiar-se da Vida Eterna.
Como se vê, não é fácil chegar a um consenso
em torno das interpretações das denominações religiosas e muito menos
determinar quem está certo ou errado nestas concepções. A propósito, a decisão
de escolher qual denominação está certa ou errada tira o significado mais
profundo do Evangelho de Jesus Cristo: o amor e a fraternidade.
E
eis que um legista se levantou e lhe disse, para pô-lo à prova: “Mestre, que
devo fazer para receber em herança a vida eterna?” Jesus lhe disse: “Que está
escrito na Lei? Como o lês?” Ele lhe respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma,
com toda a tua força e com todo o teu pensamento, e o teu próximo como a ti
mesmo”. Jesus lhe disse: “Respondeste bem. Faze isto e terás a vida”. (Lc
10,25-28)
Neste trecho do Evangelho, o legista[3] demonstra
ter a compreensão de que o alvo da caminhada dos seguidores de Cristo é
alcançar a salvação. Isto é surpreendente, já que a maioria dos judeus não
acredita na ressurreição. Parece-nos, portanto, que o ele de fato acompanhava
as andanças de Jesus e ouvia suas pregações com atenção, independentemente de
aderir à nova mensagem. Este doutor da lei compreendeu que o Decálogo
resumia-se em dois mandamentos e conseguiu responder à pergunta de Jesus com
precisão.
A lição deste trecho do Evangelho
para nós é entender que em primeiro lugar no Cristianismo deve estar o amor (1Cor
13) e logo em seguida, a fraternidade, pois não existe Boa Nova sem incluirmos
o outro em nossa vida. Sem estes dois elementos fundamentais, não há como
caminhar pela estrada de Jesus. Sem o amor e a fraternidade, chegamos ao ponto
a que chegou a maioria das denominações religiosas: à competição e ao rancor.
Além de ser fonte de vida, a Bíblia
é fonte da liturgia. Mas o que é liturgia? A palavra liturgia vem do grego leiturguia, que é composto por leiton-érgon
e significa “ação para o povo”. Se consultarmos o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2004), por exemplo, também
veremos que o significado de liturgia
é “1 o conjunto dos elementos e
práticas do culto religioso (missa, orações, cerimônias, sacramentos, objetos
de culto etc.) instituídos por uma Igreja ou seita religiosa”. Para um melhor
esclarecimento sobre o significado da liturgia, podemos lembrar do que escreveu
o Ven. Arc. Luiz Caetano Gracco Teixeira no artigo Introdução Básica à Liturgia Cristã, o qual foi publicado na
Revista Inclusividade nº 6:
A
liturgia cristã não é simplesmente um conjunto de ações, gestos e palavras
edificantes que ajudam o cristão a rezar e sentir-se bem; a liturgia não é
simplesmente uma atividade cênica cuja finalidade seria provocar bem estar
emocional. Tampouco é um conjunto de gestos e palavras mágicas que teriam o
poder de alterar ou interferir na natureza ou na própria história humana. Quem
assim pensa, confunde liturgia com magia.
Destas duas fontes, portanto,
podemos chegar às seguintes conclusões sobre liturgia: 1) é inerente ao culto
religioso; 2) não é exclusiva de nenhuma denominação religiosa cristã, nem de
uma religião específica; 3) consiste de ações, gestos, palavras, objetos e
vestimentas utilizados para uso no culto religioso sem ser uma atividade cênica
para as pessoas que dela participam; 4) não tem caráter de magia.
Quando dizemos, então, que a Bíblia
é fonte da liturgia, indicamos que temos consciência de que é na Bíblia que estão
indicados os elementos litúrgicos que dão origem ao culto religioso não só dos cristãos,
mas primariamente do povo judeu. Desde o Antigo Testamento (a Torá,
especificamente) constatamos que Deus prescreve sacrifícios, datas para
honrá-Lo, vestes, ornamentos, recipientes e gestos litúrgicos para conduzir o
culto judaico em conformidade com Sua grandiosidade, em agradecimento por sua
dedicação e amor ao povo por Ele escolhido.
Assim, o culto judaico inspira os
cristãos a continuarem com a tradição litúrgica, reconhecendo um dia e uma
época especial para honrar a Cristo (domingo/Páscoa), lembrando seu sacrifício
redentor através do memorial que é por Ele mesmo instituído e celebrando sua
Ressurreição dentre os mortos.
A
caminhada iniciada por Deus no Antigo Testamento é continuada por Cristo no
Novo Testamento, que estabelece uma Nova Aliança com quem desejar segui-Lo.
Esta caminhada tem como objetivo final a vida em abundância de que o Pai bem
como o
Filho são a fonte (Jo 5, 26).
2.1 Hermenêutica e exegética
Em primeiro lugar é necessário que
se esclareça que embora sejam parecidas, a hermenêutica e a exegética têm suas
especificidades: a hermenêutica é uma ciência
cujo objeto é a interpretação de textos, sejam eles de natureza bíblica,
filosófica, literária, histórica, etc. Desta forma, a hermenêutica funciona num
âmbito muito mais amplo do que a exegética, que se configura num ramo da Teologia cujo objetivo é
estudar os textos bíblicos, interpretá-los e ensiná-los.
Na definição de D. Humberto
Maiztegui Gonçalves contida no Dicionário
Brasileiro de Teologia (2008), a hermenêutica tem caráter histórico,
linguístico, dialético, ontológico, textual, atual e subjetivo. No caso
específico da hermenêutica bíblica, têm sido utilizados, ao longo do tempo, os
métodos alegórico ou espiritual (que foi utilizado inclusive
pelo apóstolo Paulo), literal (que
teve início na Idade Média através de interpretações judaicas, influenciando
Tomás de Aquino e alcançando os primeiros reformadores protestantes), moral ou tropológico e o anagógico ou
escatológico (estes últimos ainda
durante a Idade Média).
Pablo Richard (1988) refere-se a
estes métodos como dimensões, após distinguir dois sentidos que são utilizados
para a interpretação da revelação divina através da Bíblia: o sentido literal e o sentido espiritual. Para ele, é no sentido espiritual que estão presentes
os sentidos (dimensões) alegórico, moral ou tropológico (ou antropológico) e anagógico ou escatológico. Explica
ele:
Uma
primeira dimensão do sentido espiritual é o sentido
alegórico (allegoria), que nos
indica o que devemos crer, isto é, constitui uma nova interpretação, funda uma
nova teologia, uma nova maneira de entender. Uma segunda dimensão do sentido
espiritual é o sentido moral (moralis) ou sentido tropológico ou antropológico,
que nos ensina o que devemos fazer, isto é, este sentido cria uma nova prática,
uma nova maneira de ser ou agir na história. Enfim, temos a dimensão dada pelo sentido anagógico (anagogia) ou escatológico,
que nos indica para onde devemos caminhar ou tender, isto é, cria uma nova
esperança, novo projeto histórico, nova utopia. (RICHARD, 1988, p.14)
A partir da Idade Moderna, Gonçalves
(2008) identifica o aparecimento do método contextual
(século XVI) e do Método
Histórico-crítico (MHC), influenciado pelo pensamento iluminista alemão e
deísta inglês dos séculos XVII e XVIII. Este método buscou compatibilizar a fé
e a razão através da aplicação do pensamento científico à interpretação da
Bíblia, o que não foi uma exclusividade da Teologia, mas uma tendência a partir
do século XVIII atingindo seu apogeu no século XIX, época em que a ciência
adquiriu maior prestígio do que a religião, sobretudo na Inglaterra, então no
auge da Revolução Industrial e da Revolução Científica.
No século XX, surgem a análise semiótica/semântica-estrutural, a interpretação existencial ou demitização, a interpretação psicológica, a interpretação
desconstrucionista, a hermenêutica
sociológica ou leitura materialista,
a leitura popular, a hermenêutica feminista, a negra e a indígena (GONÇALVES, 2008). É claro, portanto, o direcionamento da
hermenêutica para uma maior aproximação com o indivíduo e, em seguida, com as
questões sociais. Esta mudança busca novamente aproximar Deus do povo e das
aspirações deste, visando reencontrar o caminho perdido seguindo, então, por
uma nova direção.
Todos estes desenvolvimentos já
coincidem com a exegética, visto estarem no âmbito da interpretação bíblica,
parte inequívoca e inseparável da Teologia. Goldingay (1995) apud Gonçalves (2006) define a exegese
como uma “tentativa de chegar a um acurado entendimento histórico do ponto onde
o texto da Escritura se origina” e aponta quatro momentos de que ela se utiliza
para alcançar seus objetivos: a síntese ou reflexão, a apropriação, a aplicação
e a comunicação.
O entendimento histórico e a análise
da mentalidade que permeava o período em que o autor bíblico escreveu são
fundamentais para se chegar a uma exegese de característica mais contextual e
menos fundamentalista alcançando, como resultado, as fases de aplicação e de comunicação que se constituem, respectivamente, na descoberta da “fala
de Deus”, nas preocupações d’Ele para o nosso tempo e nas formas de
compartilhamento das novas interpretações para as pessoas, a fim de se alcançar
uma nova ação no meio comunitário.
As
leituras fundamentalistas causam, na maioria das pessoas anglicanas do Brasil,
certo “incômodo” provocando a demanda por uma exegese bíblica capaz de devolver
a liberdade de ser e crer incentivando, também, a participação na defesa do
meio ambiente e da justiça social, política e econômica e, principalmente, de
acolher as pessoas, com amor e sem constrangimentos. (GONÇALVES, 2006)
Como podemos observar, o caminho
percorrido pela hermenêutica/exegética é longo e diverso, predominando as
interpretações clássicas/conservadoras, mesmo no século XX por grande parte das
denominações religiosas cristãs, inclusive setores da própria Igreja Anglicana.
Isto porque percebemos uma inclinação sempre mais tendente para interpretação
literal da Bíblia, uma vez que ela é percebida como um guia comportamental para
se chegar à salvação, deixando-se de lado a compreensão da realização do Reino
de Deus em nosso meio.
A constatação de D. Humberto
Maiztegui Gonçalves pode ser conferida na atitude das Igrejas em relação à
causa da valorização das mulheres, dos negros, dos índios e dos homossexuais.
Grande parte das denominações não consegue alcançar estas pessoas,
conferindo-lhes um papel de igualdade na comunidade e relegando-as a papéis
secundários (ou terciários!) no trabalho eclesial.
Em relação às mulheres, a Igreja
Anglicana já demonstrou ter entendido que não há justificativa para
considerá-la inferior e submissa aos homens ao permitir que elas sejam
ordenadas ao presbiterato e também ao episcopado[4]. A
esta abertura têm aderido outras denominações religiosas, sobretudo
evangélicas, onde as mulheres têm assumido as funções de pastoras, liderando o
povo.
Em relação aos negros, percebe-se
que ainda é pequena a participação de pessoas afrodescendentes em ministérios
ordenados. Isto não acontece apenas na Igreja Anglicana, muito embora haja um
exemplo admirável de inclusão e tolerância racial na condução de John Sentamu à
Arquidiocese de York (Inglaterra), onde exerce sua primazia sobre o povo inglês,
de expressiva maioria branca. Após o anúncio do arcebispo de Canterbury, Dr.
Rowan Williams, primaz de toda a Comunhão Anglicana, de sua renúncia no final
de 2012 ao cargo que tem exercido desde 2003, o arcebispo John Sentamu colocou
seu nome sob o exame dos anglicanos para sucedê-lo como Arcebispo de Canterbury
e se tornar o primeiro negro eleito chefe do toda a Comunhão Anglicana. O
escolhido foi Justin Welby, bispo de Durham.
O caso dos índios é ainda mais
emblemático em relação à exclusão exegética. Mais de quinhentos anos depois da
ocupação do Novo Mundo pelos europeus, nenhuma denominação conseguiu incluir
adequadamente os povos aborígenes às comunidades cristãs. Tentativas foram
feitas pelas denominações que estabeleceram seu predomínio nas diversas nações
americanas que se formaram, mas o que se percebe hoje é que praticamente não
existem lideranças indígenas alçadas às instâncias clericais. Desta forma,
mostra-se retumbante o fracasso das denominações cristãs em levar o Evangelho
para os índios, sem expropriar deles sua cultura.
No mês de julho de 2012, D.
Sebastião Armando Gameleira Soares, bispo da Diocese Anglicana do Recife esteve
em Ilhéus, na Bahia, onde foi instalar o Ponto Missionário da Santíssima
Trindade. Lá, recebeu seis novos membros da Igreja Episcopal Anglicana do
Brasil, vinculados à Paróquia do Bom Pastor (Salvador/BA), dentre eles estava
um indígena de nome Sandro (Caramuru, da tribo Tupinambá), que batizou seus
dois filhos. Na ocasião, os indígenas queixaram-se ao bispo a respeito de
Igrejas evangélicas que chegam a Ilhéus dividindo o povo e desprezando a
cultura indígena, classificando-a de paganismo inspirado pelo diabo e pediram
ao bispo que a Igreja Anglicana dialogue com a tribo para começar a criar uma
comunidade cristã que assuma a cultura indígena.
Sandro é membro da tribo aborígene Tupinambá,
onde se chama pelo nome de Caramuru. À cerimônia estavam presentes trinta
pessoas, entre essas o cacique Jaguar e sua esposa Potira. Foram batizadas as
duas crianças de Luciano e as duas de Sandro, estas chamadas pelos dois nomes
que carregam, mas tendo o nome indígena pronunciado em primeiro lugar.
Imaginem, o nome do menino é Tupã. Foi lindo ver na assembleia litúrgica
Sandro, o cacique e as crianças vestidos a rigor, de acordo com a tradição
indígena: tanga, cocar, maracá na mão, pés descalços e o corpo pintado. Dom
Sebastião convidara o cacique a tomar lugar a seu lado, à esquerda da mesa do
altar. (Sítio da Diocese Anglicana do
Recife)
Na tradição europeia herdada pelo
Brasil, não existe a menor possibilidade de receber indígenas usando suas
vestimentas comuns numa assembleia litúrgica. Antes de serem aceitos na
comunidade, os índios deveriam assumir os costumes dos colonizadores e
abandonar séculos de cultura nativa. Neste exemplo se encontra o reflexo da
intolerância e do desrespeito com o outro mostrado através do comportamento dos
evangélicos que trazem a divisão ao invés de lutarem pela inclusão. O desafio
da Igreja Anglicana é ser autêntica no seguimento fiel ao Evangelho de Jesus
Cristo, não deixando que injustiças como estas sejam feitas.
A inclusão dos homossexuais é, no
entanto, a mais ruidosa. Ela suscita grandes conflitos mesmo dentro da Comunhão
Anglicana, que tem a Inclusividade como uma de suas principais atuações. Como
ela será processada, não o sabemos. Sem dúvida, no entanto, Jesus Cristo
estaria se aproximando dos homossexuais caso vivesse em nosso mundo de hoje,
pois ele veio “para que todos tenham vida, e vida em abundância”. O que pode
ser mais importante para que alguém tenha vida em abundância do que ter
felicidade? Ao viver num mundo que o considera como “anormal” e “imoral”, o
homossexual é alijado de seu direito de ser feliz. A vida em abundância é dele tirada,
portanto.
A percepção de que a exegese não
está conseguindo matar a sede por Deus do povo, mas afastando-o da Bíblia, é
explorada por Carlos Mesters no livro Por
trás das palavras (1984). Para ele, o povo tem silenciado diante das
explicações que a exegética lhe dá, uma vez que elas não correspondem à sua
realidade, tornando o discurso bíblico similar a um discurso histórico,
perdendo a vivacidade e a atualidade:
Este
silêncio é eloquente. Fala mais do que muitas palavras, pois, sem o saber, pelo
seu silêncio, o povo acusa, ameaça e solapa pela base o sistema que o condenou
à mudez e à ignorância e o destinou a ser doutrinado, sem participar, correndo
o risco de perder a sabedoria que tem desde séculos e de substituí-la por
outros valores e conhecimentos. (MESTERS, 1984, p.33)
Ao se afastarem do povo através
dessa exegese sem vida, as Igrejas históricas cristãs esvaziam-se, dando espaço
para o crescimento da Teologia da Prosperidade. Este enfoque exegético parece
se aproximar mais do povo porque surgiu da percepção das necessidades que ele
tem em países onde a exclusão é muito forte, como no Brasil. No entanto, a
Teologia da Prosperidade leva para mais longe ainda do sentido da Bíblia as
pessoas, uma vez que o ideal da “vitória em Cristo” é o alcance quase que
exclusivamente de melhorias financeiras, o que condiz com a ideologia e a
cultura reinantes.
No Evangelho, no entanto, Jesus nos
ensina o que é importante para ser fiel à aliança com Deus em Mt 6,31-33:
Não
vos preocupeis, portanto, dizendo: ‘Que comeremos? que beberemos? com que
vestiremos?’ – tudo isso os pagãos procuram sem descanso –, pois bem sabe o
vosso Pai celeste que precisais de todas estas coisas. Procurai primeiro o
Reino e a justiça de Deus, e tudo vos será dado por acréscimo. (BÍBLIA TEB,
1995, p.1200)
A mensagem de
Jesus, muito embora tivesse sido proclamada há mais de dois mil anos pode ser
entendida no contexto da popularização da Teologia da Prosperidade. Com o que
se preocupam os “apóstolos/as”, “bispos/as” e “pastores/as” das denominações
que propagam este ideário? Eles sabem em que contexto social vivem seus
adesistas em potencial e vão à cata deles com o discurso certo. Prometem vida
próspera e antes disto sugam o resto de dignidade que o pobre possa ter,
enriquecendo às custas daqueles que deveriam proteger e aprofundando sua
alienação. São, na verdade, os pagãos
de que fala Jesus. Só servem para negociar com o Evangelho e não para
propagá-lo conforme o mandato que foi dado por Cristo. Não buscam o Reino e a
justiça de Deus, que são justamente ouvir o povo sobre sua experiência
espiritual e levá-lo a aprofundar a mensagem do Evangelho com direcionamento
para os pobres de Deus, que são todas aquelas pessoas excluídas da vida em
abundância.
2.2 A eclesialidade anglicana
A teologia
anglicana se assenta em um tripé
epistemológico. Este tripé se constitui de Bíblia, Tradição e Razão.
Como
todas as denominações cristãs, a Igreja Anglicana tem a Bíblia como livro
basilar, fonte onde se encontram os textos indicativos do projeto de Deus e da
implantação de seu Reino entre nós. Este projeto consiste numa grande caminhada
iniciada por Javé com Abraão e consolidada com Moisés no resgate do povo da
escravidão do Egito, em direção à liberdade e ao estabelecimento de uma vida
próspera e abençoada por/com Deus na Terra Prometida.
A
caminhada iniciada no Antigo Testamento teve sua sequência no cumprimento da
missão de Jesus Cristo, filho de Deus que se encarnou e veio viver entre o seu
povo, trazendo um novo paradigma religioso que expôs o desvio implantado pelos
chefes do povo (sacerdotes judeus) em relação ao caminho indicado e percorrido
por Deus e seu povo. Esta deturpação da mensagem de Deus ao longo da história
não é exclusiva de escribas, fariseus e saduceus, mas permanece após a
consolidação da Igreja Cristã, através do olhar dos tradutores e exegetas
bíblicos que imprimiram aspectos culturais e também ideológicos aos textos
sagrados.
Dado que a Bíblia se apresenta de forma
abstrata, cortada de suas raízes históricas e espirituais no mundo dos pobres,
e dado que normalmente a tradução é feita por peritos que respiram o mundo
cultural, ideológico e espiritual do sistema dominante, surge a suspeita de que
toda tradução da Bíblia para uma língua moderna seja normalmente reconstrução
do texto original na cultura, ideologia e espiritualidade do sistema dominante.
(RICHARD, 1988, p.20)
Desta
forma, as traduções da Bíblia podem macular seu verdadeiro sentido espiritual,
servindo para ratificar práticas religiosas, sociais e políticas que seriam
rejeitadas por Cristo.
Diante
desta realidade, a Igreja Anglicana não olha a Bíblia como o único local em que
esteja contida a Palavra de Deus. Entende que Deus fala a todo momento
utilizando-se de outros canais através dos quais possa estabelecer a
comunicação com o seu povo.
Um
dos canais utilizados por Deus é a Tradição, segunda ponta do tripé. Entende-se
por Tradição o modo como os cristãos compreenderam e expressaram a fé,
construindo a Igreja de Cristo através de ações de evangelização, de
convivência comunitária, de manutenção de um corpo de sacerdotes para conduzir
o culto (presbíteros e bispos), de observância ao dia da Ressurreição do Senhor
para louvor e adoração a Deus e de organização litúrgica, especialmente a
conferência de sacramentos para os fiéis.
A
Tradição está expressa na Bíblia em fatos narrados no Antigo Testamento, no
Evangelho e nas cartas apostólicas, mas também está no ensinamento dos
Apóstolos que não foram incluídos nos textos canônicos, mas foram passados para
os fiéis ao longo do tempo em que estes Apóstolos conduziram as comunidades que
fundaram; dos bispos e dos doutores da fé. A Tradição sistematizou a Igreja
cristã e ajuda a mantê-la convergente com o espírito de amor e fraternidade
expressos desde o surgimento da Igreja primitiva.
O
outro elemento constitutivo do tripé é a Razão. A Razão é o reconhecimento da
mensagem bíblica, relacionando-a com o tempo em que vivemos hoje. Ou seja, a
Bíblia foi escrita no passado, por escritores que tinham uma visão da realidade
limitada à sua mentalidade cultural. É preciso compreender esta mensagem com os
olhos de hoje, adequando seu estudo à realidade a que estamos inseridos,
deixando de lado os preconceitos humanos e procurando enxergar com os olhos de
Deus.
Diante
deste desafio de romper com as interpretações clássicas que afastam o homem da
verdade de Deus, é que surge o conceito de inclusividade.
A inclusividade surge do uso da
razão: se Deus criou um povo, libertou-o da escravidão, deu-lhe uma terra para
construir sua nação, fez surgir dele o messias, houve um propósito amoroso para
fazê-lo. Ele não tomou estas providências apenas para encher este povo de leis
que não pudessem cumprir, para lançá-lo na perdição eterna. Se assim tivesse
feito, teria escravizado o povo ao invés de libertá-lo.
Vejamos
o seguinte exemplo retirado de Jo 4,27-28. Os discípulos chegam e encontram
Jesus conversando com uma mulher samaritana: “Nisso os discípulos chegaram. Eles ficaram estupefatos ao verem Jesus
falar com uma mulher; mais ninguém lhe disse: ‘Que procuras?’ ou ‘Por que
lhe falas?’” Deste trecho do Evangelho podemos retirar dois entendimentos: a)
Jesus quebrou um preconceito e uma proibição social ao conversar com uma
mulher, que inclusive era samaritana! Desta forma, ele mostrou que Deus não
exclui as mulheres de seu Reino; b) os discípulos entenderam o gesto de Jesus e
não procuraram lhe dar lição de moral pelo comportamento socialmente reprovável:
o amor não pode ser nutrido por preconceitos.
Em
outro exemplo, podemos observar o diálogo de Jesus com os fariseus que julgam
inválidas as palavras do Cristo por dar testemunho de si mesmo. Ao que este
responde (Jo 8, 15-16): “Vós julgais de
modo puramente humano. Eu não julgo ninguém; e se me acontecer julgar, o
meu julgamento é conforme à verdade, porque eu não estou sozinho: há também
Aquele que me enviou.” Aqui Jesus deixa claro que a visão de Deus é diferente da
dos sacerdotes, que achavam que entendiam as Escrituras. Ao classificar o
julgamento dos fariseus como “puramente humano”, Jesus invalida todos os
(pre)conceitos religiosos que eles têm e mostra o verdadeiro olhar de Deus.
Como
se vê, a eclesialidade anglicana contrasta com a de boa parte da de outras
denominações religiosas. Do ponto de vista da prática evangélica, isto é muito
bom. No entanto, tal fundamento religioso pode causar problemas e conflitos num
mundo acostumado com uma interpretação do Evangelho construída sob o prisma do
predomínio cultural europeu sobre os próprios textos sagrados.
2.3 A leitura popular da Bíblia
Quando
começamos a ler a Bíblia percebemos, desde o Gênesis, a preocupação de Deus com
as pessoas. Após criar o mundo, Ele sente necessidade de colocar no paraíso
terrestre um ser inteligente que possa dominar a criação e dela usufruir. Cria,
portanto, o ser humano: macho e fêmea (Gn 1,26-27), abençoa-os e ordena que
sejam fecundos, prolíficos e dominem a terra (Gn 1, 28). A partir do momento
que o ser humano peca, mesmo punindo-o pela desobediência, Deus começa a
preparar sua redenção.
Como
podemos observar, Deus se faz sempre presente na vida das pessoas. Ele está
atento às suas necessidades e não as abandona: está sempre pronto a perdoar
seus erros/pecados e caminhar com elas rumo à redenção. É justamente isto que
acontece depois do pecado de Adão: Deus faz um novo plano. Ele decide preparar
um povo que seja digno de gerar Seu próprio Filho para que ele conceda o perdão
e o leve à salvação.
Ao
longo do tempo, o Cristianismo se distanciou da leitura bíblica que percebe
Deus como um Pai preocupado com o bem estar de seus filhos e se aproximou da
leitura que mostra Deus como um Senhor que tudo vê e tudo cobra das pessoas. A
percepção do poder de Deus se sobrepôs à da misericórdia e do amor que Ele
dedica à sua criação. Mesmo Jesus tendo vindo e demonstrado que as
interpretações, os julgamentos estavam errados, judeus e cristãos não
compreenderam o cerne da mensagem, e continuaram a pensar nas leis para
privilegiar as regras de comportamento e esquecer o essencial. Como disse
Antoine de Saint-Exupery em uma das muitas reflexões contidas em seu livro O Pequeno Príncipe, “o essencial é
invisível aos olhos”. O essencial é o amor/caridade como bem percebe São Paulo
em sua carta aos Coríntios.
No tempo que vai desde o início do
cristianismo até o começo da época moderna, não existiam ainda no povo as
dificuldades que lançavam dúvidas sobre a veracidade histórica da Bíblia. Com a
máxima tranquilidade, a Bíblia era aceita e lida como se liam os outros livros de história daqueles tempos.
(MESTERS, 1984, p.47)
Com
esta visão de um livro de história comum, porém inspirado por Deus, a Bíblia
deixou de ser um livro de espiritualidade comunitária e passou a ser um livro
de história sagrada onde aprendemos como Abraão, Isaac e Jacó obedeceram a Deus
e foram recompensados por isto e como Jesus veio ao mundo e fez tantos
milagres, sendo incompreendido e morrendo assassinado na cruz.
Esta
visão que enfatiza o aspecto histórico da Bíblia, deixando o verdadeiro sentido
espiritual de lado começou a ser modificada com novos estudos iniciados na
América Latina denominados Leitura
Popular da Bíblia ou Hermenêutica da Libertação. Aqui se enfatiza a noção
de povo, identificando-o com o pobre. No entendimento da Hermenêutica da
Libertação, o conceito de pobre é utilizado em sentido amplo, abrangendo
trabalhadores de baixo poder aquisitivo do campo e da cidade, pessoas que são
vistas como inferiores perante a sociedade por questões de sexo, raça, etnia e
orientação sexual (mulheres, negros, índios e homossexuais). Ou seja, as
pessoas que antes não tinham voz são ouvidas e mostram sua experiência e
cooperação em trazer o verdadeiro sentido espiritual da Bíblia que é: Deus ouve
as angústias do pobre, caminha com ele e cura suas feridas.
O mundo dos pobres não é apenas uma
realidade econômica, política e cultural, mas também é – à luz da fé – o lugar
privilegiado da presença e revelação de Deus. (...) É nesse mundo que hoje
fazemos nova experiência espiritual. Deus aparece neste contexto histórico com
outro rosto e nos interpela com uma palavra diferente. (RICHARD, 1988, p.10)
A Leitura Popular da Bíblia tem seu
lugar privilegiado nas Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s, da Igreja
Católica Apostólica Romana. Apesar de ter ajudado a recuperar o sentido
espiritual da Bíblia, a ruptura hermenêutica que provoca gera atritos dentro da
própria Igreja onde surgiu, uma vez que determina a imersão do povo na
política, abalando estruturas consolidadas e ajudando a transformar a
sociedade.
2.4 Considerações finais
O uso da Bíblia dentro da nova
perspectiva de Leitura Popular é algo agradável e desafiador, pois abre os
olhos do leitor para novos aspectos que antes eram deixados de lado. Na prática
anglicana, nas reflexões feitas na Paróquia Anglicana do Bom Pastor
(Salvador/BA), deixamos de focalizar demasiadamente os milagres, ou eventos de
maior destaque na ação ministerial de Jesus, por exemplo, e enfocamos outras
mensagens presentes no mesmo texto que, muitas vezes,
sofrem prejuízo nas reflexões tradicionais. Isto ajuda a enxergar o Evangelho
de uma maneira nova, totalmente desligado das cobranças de perfeição que são
contempladas na maioria das vezes.
A Leitura Popular da Bíblia nos
direcionar para a realidade que Jesus Cristo queria nos fazer enxergar.
REFERÊNCIAS
CROATTO, J. Severino – Hermenêutica bíblica.
DIOCESE ANGLICANA DO RECIFE – Visita
pastoral a Ilhéus, Bahia. in http://dar.ieab.org.br/2012/07/12/visita-pastoral-a-ilheus-bahia
.
Recife: Julho de 2012
EDIÇÕES LOYOLA – A Bíblia Teb – São Paulo: Paulinas e
Loyola, 1995
FLORES, Josué. Do uso da Bíblia na Igreja hoje. in www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/bibliahermeneutica/do_uso_da_biblia.pdf . Porto Alegre: CEA – IEAB.
GRACCO TEIXEIRA, Luiz Caetano. Introdução Básica à Liturgia Cristã. In: Revista Inclusividade. Número 6
(p.7-34). Porto Alegre: CEA
HOUAISS, Antonio et al. – Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
MAIZTEGUI GONÇALVES, Humberto. Hermenêutica bíblica. In: Dicionário Brasileiro de Teologia
(DBT). São Paulo: ASTE, 2008, p. 470-472.
___________________________.
Exegese bíblica e eclesialidade anglicana.
In: Revista Inclusividade. Ano 5,
número 13 (p.25-40). Porto Alegre: CEA, Abril 2006.
___________________________. Bíblia e Anglicanismo.
RICHARD, Pablo. Leitura popular da Bíblia na América Latina
(Hermenêutica da Libertação). In: Revista
de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA). Nº 1; p.8-25. Petrópolis/São
Paulo/São Leopoldo: Vozes, Metodista, Sinodal, 1988
[1] O
Rev. Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves tornou-se bispo no final do ano de 2012.
[2]
Especialista em Linguística Aplicada à Língua Inglesa (UEFS) e estudante de
Teologia (SETEK).
[3]
A Bíblia TEB, que utilizamos neste trabalho, utiliza a palavra “legista” para
significar alguém que possui um extenso conhecimento da lei judaica, pois o
termo “legista”, com o significado de “especialista em leis” deriva-se do
francês légiste que trouxe o vocábulo
do latim (HOUAISS e VILLAR, 2004). Outras versões da Bíblia utilizam termos como doutor da Lei, legalista, etc. para designar estas pessoas.
[4]
Apesar da existência de bispas em vários países que fazem parte da Comunhão
Anglicana, a Igreja Anglicana na Inglaterra ainda não admite a ordenação de
mulheres ao episcopado.