Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves[1]
Trabalho apresentado por ocasião
da Semana de Oração
pela Unidade dos Cristão na
UNILASALLE – 2012.
1.
Introdução
Este assunto, mesmo que um
tanto entediante por sua recorrência, encerra um retrato do sentido da
existência humana no seu sentido mais profundo de pura sobrevivência e de
transcendência. Vou, em um primeiro momento, mostrar como os ciclos são parte
da vida e da ideia de existência humana, inclusive nas Escrituras
Judaico-Cristãs, tirando deles os mais básicos ensinamentos sobre a
sobrevivência, mas também sobre o papel das divindades e da relação da
humanidade com o Universo. Mas que, no mito do Dilúvio, há uma denuncia contra
uso terrorista da ameaça do fim e um manifesto de esperança da continuidade da
vida em eterna aliança com Deus.
2.
Ciclos
como forma de organizar uma cosmologia da vida e da morte, do começo e do fim.
Antes da Bíblia, e antes de
qualquer sistema religioso ou cosmológico vem a Vida. A fé nunca caiu do céu,
mas da tensão entre três fatores:
a.
O
sentimento humano de transcendentalidade (ou a pretensão humana de alguma
forma sobrepujar o fato inexorável da morte).
b.
O
contexto vital e a exigência cíclica da sobrevivência
(coleta, caça, pesca, ciclos agrícolas, ciclos climáticos, dia e noite, etc.).
c.
A
identidade dos grupos humanos e sua organização social, política, econômica e
cultural (respondendo questões como quem somos, o que fazemos, o
que comemos, o que vestimos, como falamos e como nos relacionamos com outros
grupos e com o meio ambiente, etc.).
Alguns biblistas, bem intencionados, com
Wright (O Deus que Age, traduzido pela ASTE) tentaram demonstrar que a fé
judaico-cristã ao contrário das chamadas “religiões naturais”, dentro das quais
podemos colocar as religiões indígenas e a religião Maia, não estaria
condicionada aos ciclos da vida. Por um lado, o que corretamente foi observado
por estes estudiosos é que a fé judaico-cristã é fundada por mitos e acontecimentos fundantes de caráter
mais histórico do que natural. Portanto, os ciclos bíblicos concentram-se
mais no aspecto cronológico do que cosmológico. No entanto, os ciclos cosmológicos aparecem no centro
da religiosidade israelita como forma de linguagem, até para se referir à
manifestação de Deus na História do Povo. O primeiro ciclo a ser teologizado é
o da SEMANA, isto é, o CICLO DE SETE DIAS, ou de SETE ESTÁGIOS.
Mesmo que o Primeiro Mito da
Criação, em Gn 1,1-2,4a, seja de origem pós-exílica, formulado a partir do
encontro dialético entre a fé de Israel e a mitologia babilônica (presente em
poemas como Gilgamesh e Enuma Elish) a instituição do sábado como dia de
descanso é anterior ao exílio. O mesmo acontecia com o ANO SABÁTICO (quando as
dívidas eram perdoadas e as terras liberadas para o acesso de todas as pessoas,
cf. Dt 15,1-2) e depois o ANO DO JUBILEU (em um cíclo de 7 vezes 7 anos, deixando
o ano 50 para a redistribuição da terra, cf. Lv 25,8). Este mesmo ciclo é
resgatado pela comunidade do profeta Isaías que o usa como linguagem utópica,
isto é, como o CÍCLO DOS CÍCLOS, quando o MESSIAS ou UNGIDO libertaria todo o
povo de todas suas mazelas (cf. Is 61,2). Depois, segundo o Evangelho de Lucas,
Jesus Cristo teria proclamado este mesmo ciclo como parte do sentido último da
sua missão (cf. Lc 4,19).
Assim o Ciclo passa a ser também uma
linguagem ou uma imagem da realização última das esperanças de um povo, isto é,
passa a ser um ciclo escatológico, e escatologia nos fala do fim, mas por ser
um ciclo, também nos fala de um começo!
Outra
expressão cíclica judaico-cristã foi, ou ainda é, o milenarismo. O Salmo
90,4 diz que para Deus mil anos são como um dia, assim, quase que
inocentemente, a Escritura Judaica dá ao menor ciclo natural (o do dia) um
valor cronológico (mil anos). A partir disso, rabinos como Eliezer bem Josef
propõem uma possível medição cronológica do Ciclo dos Ciclos[2]. Mas é claro que esta não
foi a única! No livro de Daniel encontramos ciclos medidos em dias: um primeiro
ciclo de 1290 dias e outro de 1335 dias, chegando-se ao “fim dos dias” (Dn
12,11-13).
No livro de Apocalipse, que entendemos
como uma grande liturgia de resistência contra a repressão do Império Romano
contra as Igrejas Cristãs da Ásia Menor (mencionadas nos primeiros dois
capítulos), a busca da resistência e da esperança resgata a visão dos ciclos milenares
de opressão, depois dos quais aconteceria a grande libertação, não apenas dos
males da história, mas da própria morte! (Ap 20,1-7.14). Mas, no mesmo livro
também são usados os dias como medida de ciclos, assim como antes foi feito no
livro de Daniel (1260 dias em Ap 11,3 e 12,6).
Em geral o anuncio do Ciclo dos Ciclos
é marcado por grandes catástrofes. Catástrofes que não são criadas pela
cosmovisão cíclica, mas que fazem parte da experiência cotidiana dos povos que
as formulam. Contudo, quando as
catástrofes são interpretadas no ciclo representam a esperança de um novo
começo, e da plena realização dos todos sonhos humanos em harmonia com todas as
qualidades divinas. O fim do mal conhecido é desejado e esperado, pois alimenta
a resistência das pessoas que lutam, sofrem e trabalham por um recomeço melhor.
3.
O
contra-mito do Dilúvio proclama o fim do fim.
O contra-mito do Diluvio pode ser interpretado assim
porque é uma contestação a tudo o que a mitologia babilônica usava como
justificativa para a submissão dos povos. Os simples mortais existiam apenas
para servir às divindades e seus representantes terrenos, cf. Enuma Elish. Na
releitura do Dilúvio Bíblico, após
descrever as hierarquias político-ideológicas dos opressores (como gigantes e
filhos das divindades que usavam as filhas da humanidade para gerar valentes e
heróis; cf. Gn 6,4), o protagonismo do fim passa para uma humilde família de
simples mortais (6,8-9.18), isto é, dos oprimidos como sujeitos de um novo
tempo de libertação!
No Dilúvio morrem todos os
opressores, todos os filhos das divindades, finalizando assim um ciclo de
opressão. Acontece, portanto, o contrário do que os soberanos anunciavam. Antes
os imortais “filhos das divindades” sobreviveriam e o povo morria. Agora o povo
vive em harmonia com as criaturas e os filhos das divindades e seus
descendentes é que morrem, dando origem a uma cosmologia alternativa. Mas, o
manifesto não acaba ali! No final todas as criaturas vivas da terra, humanos e
animais, celebram uma aliança tendo o Arco Iris como sinal do NOVO COMEÇO! Nesta nova aliança contra o terror, se
proclama o seguinte:
Não tornarei mais a
amaldiçoar a terra por causa do ser humano; porque a imaginação do coração humano
é má desde a sua meninice, nem tornarei mais a ferir todo o vivente, como fiz.
Enquanto a terra durar, sementeira e sega, e frio e calor, e verão e inverno, e
dia e noite, não cessarão. Gn 8,21-22.
Observem que Deus reafirma
os ciclos da vida na agricultura, nas estações do ano, e no dia a dia, mas não como
instrumento de terror, e sim como sinal de vida! Finalmente reafirma:
E eu convosco
estabeleço a minha aliança, que não será mais destruída toda a carne pelas
águas do dilúvio, e que não haverá mais dilúvio, para destruir a terra. E disse
Deus: Este é o sinal da aliança que ponho entre mim e vós, e entre toda a alma
vivente, que está convosco, por gerações eternas. Gn 9:11-12.
4.
Concluindo:
o fim e o começo
Portanto, sonhemos, falemos e vivamos a
esperança do fim do ciclo que está nos levando ao fim, pela nossa própria
capacidade de explorar tudo e todos sem o mais mínimo respeito. Esperemos o fim
do domínio dos que se acham, ou querem ser vistos, como “deuses” ou “gigantes”
ou “valentes”; e começo de um novo tempo da alegre harmonia e vital convivência
entre todas as criaturas.
Parece, assim, mais produtivo, que em nossas mentes e
corações haja um brilhante Arco Iris, muito mais voltado para o que vai tratar
a conferência Rio + 20, e em todos os esforços para tornar este planeta mais
habitável e sustentável para a vida em todas suas formas, do que no que nas
profecias que certamente acabarão no dia 22 de Dezembro de 2012.