15 setembro 2010

Mundo Urbano - Subsídio

















JUVENTUDES E MUNDO URBANO: UMA ABORDAGEM BÍBLICA

1. Algumas perspectivas de urbanidade e juventude a partir da experiência Bíblica do Primeiro Testamento

“Cidade” em hebraico ‘yir e em grego polis é um fenômeno humano complexo e extremamente contraditório desde suas mais remotas origens. Na Bíblia a cidade é originariamente mal vista, foram construídos diversos mitos e guardaram-se testemunhos anti-cidade. Podemos mencionar Gn 11.1-9, onde encontramos o texto conhecido como “A Torre de Babel”, mas que, se lermos com atenção, se refere à “Cidade e a Torre”: “edifiquemos para nós uma cidade e uma torre (...) e conseguiremos para nós fama” (11.4). A cidade é um fenômeno político-religioso antes do que cultural. A política da cidade é a política da concentração do poder, como diz o mesmo texto um pouco mais adiante: “para que não sejamos espalhados sobre a face da terra” (11.4b). A origem das cidades é descrita, antes em Gênesis, como “invento” dos descendentes de Caim (Ferro) em Gn 4.17. O mesmo acontece com as narrativas míticas de Sodoma e Gomorra (Gn 19). Estas “cidades” foram chamadas de “cidades-estado”, onde todos os poderes de dominação se concentravam, se fortaleciam mutuamente e defendiam de inimigos externos e internos. Durante a “Tomada da Terra” (narrada teologicamente no livro de Josué e um pouco mais testemunhalmente em Juízes) se dá uma luta anti-cidade e anti-monárquica. Lutar contra o poder opressor era lutar contra as cidades e não era possível conceber um poder libertador com “cidades” como eixo de desenvolvimento (Js 2 – mesmo que resulte interessante que o texto fale sempre de ‘terra’ e nunca diga diretamente ‘cidade’, apesar de descrever constantemente suas portas e muralhas; cf. Js 24.13).
Quando surge a Monarquia em Israel a Cidade assume um papel importante, obviamente porque sem cidade não poderia existir monarquia! Logo a Cidade de Jerusalém (conquistada para ser centro político e religioso) assume o papel de “Cidade Santa”, ganhando o Templo e forçando a religião popular a uma centralização sempre conflitiva e parcial. Sucessivas tentativas como as de Ezequias e Josias (relatadas no 2º Livro dos Reis) e finalmente na reforma de Esdras e Neemias (sob a tutela do Império Persa) que tem reações diversas em Rute, Jonas, Jó e Cântico dos Cânticos.
No entanto, mais adiante surgiu a teologia da CIDADE UTÓPICA. Isto é, a possibilidade de haver uma CIDADE onde que, no lugar de concentrar o poder opressor em todas suas formas, se desenvolve a vontade de Deus e a felicidade do povo! Não podemos saber com claridade quando isso começa, no entanto, sabemos que no exílio e pós-exílio ganhou sua maior força. O Exílio Babilônico foi vivenciado por famílias urbanas, isto é, da elite citadina de Jerusalém (2 Rs 24.12-17). Ezequiel é o profeta que reflete a teologia exílica desta geração. Ele teve a difícil tarefa de explicar porque a “Cidade Santa” e seu templo tido como “Casa de Deus” foram destruídos por outro povo guiado por outras divindades (Ez 21). Seria este o fim da “Cidade Santa”? Ezequiel profetiza a reconstrução divina do templo como eixo essencial da cidade, como farol de um novo tempo de justiça. Para isso primeiro o povo precisa ser recriado a partir do rastro da morte que deixa ossos secos (Ez 37) e então, a o Templo se ergue como eixo da cidade e dos campos que a rodeiam, tudo em perfeita harmonia, como referência para as 12 tribos de um Israel recriado. O nome desta cidade seria “Javé está ali ”! (Ez 48.35).
Esta visão representa uma virada teológica importante para a fé de Israel. Das cinzas da cidade arruinada, da cidadania cativa e deprimida – ao ponto de sentir-se como morta -, surge uma possibilidade impensada: uma cidade que concentre e dissemine a vontade do próprio Deus! Mas esta visão não veio de um jovem... Pelo contrário surge de um profeta muito “doido”, altamente criativo, ex-sacerdote e viúvo, que não viveu para ver o final do cativeiro.
A juventude entra alguns anos depois, aproximadamente 20 anos após a morte de Ezequiel, quando se vislumbrava a possibilidade de uma reviravolta política com a ascensão do Império Persa e a figura de Ciro, que este grupo de jovens, em sua maioria nascidos no cativeiro , vê como um “messias”, isto é, um libertador ungido por Deus para realizar o sonho da volta à terra dos seus antepassados e da reconstrução do povo de Israel a partir da cidade em si, não só do templo (Is 45.1-3,13)! Claro que, como bem nos advertem José Possatto e Bárbara Lucas, o conceito de “juventude” é estranho aos tempos bíblicos, onde se passava da infância à vida adulta; é possível abstrair esta questão quando se fala em “novas gerações”, independente de um conceito de idade . Pois quem formula Deutero e Trito Isaias é uma “nova geração”, isto é, uma geração jovem!
Esta juventude consegue ver na cidade a base para uma nova vida onde todos os males do passado virão a ser superados! Esta cidade é uma mãe que dá a luz uma nova civilização! (Is 54.1-17). Uma belíssima imagem da “cidade-mãe” uma “metro-polis” ou metrópole. Esta nova visão da cidade não suga e acumula, mas gera bem-estar e inclui todos os povos (Is 40.9; 44.26; 54.3). No entanto, este era apenas um “grupo de jovens” querendo envolver outros “jovens” no projeto de uma nova civilização da metrópole da justiça e da paz . Em Deutero-Isaias fazem isso com certa “urgência panfletária”, evidente na própria estrutura literária do livro, com a motivação da avalanche persa caindo encima do império opressor (mesmo que se trate de outro império).
A utopia ganha sua forma poética e artística mais bela no admirável mosaico de Trito-Isaias, então sim, temos uma formulação utópico-escatológica completa (vide Estudos Bíblicos 93). Certamente trata-se do mesmo grupo de jovens de Deutero-Isaias, agora com um horizonte aberto à sua frente, mesmo que a realidade fosse dura, com miséria, desigualdade, indiferença e com pouco ou nenhum apoio externo. Agora o desafio é montar um projeto de civilização capaz de superar as mazelas que levaram, nas gerações anteriores, ao desastre total e à morte.
De novo a cidade é feminina, é mãe, Deus também se apresenta como figura feminina e se funde com a cidade! Em Is 66.10-22 temos uma magnífica demonstração dessa teologia feminina que envolve a divindade, a cidade e o povo em um manto único. A cidade assume sua maternidade inspirada na maternidade divina, acolhe, protege e ajuda no crescimento das suas filhas e filhos!
Portanto, mesmo com ajuda de pessoas não tão “jovens” do ponto de vista “etário” como Ezequiel, a cidade utópica, cidade-mãe ou metrópole dos sonhos, vem da mão de jovens e de uma teologia feminina. Sem juventude e sem o resgate do feminino não teria sido possível visualizar tal coisa. São jovens filhas e filhos de cidadãos cativos, exilados, prisioneiros em outras cidades longe da sua, que aprenderam a sonhar com a re-fundação do sentido político e teológico da urbanidade, mas que não ficaram aí, foram além, ampliaram os sonhos e os transformaram em projeto!
Esta mudança na ótica da cidade eliminou o sentido anti-citadino original? Podemos dizer que não totalmente. Passou a se entender a urbanidade como “cidades opressoras” contra “cidade santa, utópica, mãe”. Então, podemos dizer que houve uma alternativa urbana para urbanidade opressora, e não apenas a alternativa de voltar ao deserto, como afirmava Oséias (2.14) ou transformar a cidade em uma horta como anunciava Miquéias (3.1).

2. Alternativas urbanas na experiência do Segundo Testamento

No contexto greco-romano a cidade havia adquirido, mais do que nunca antes na história da humanidade, um sentido comercial e, portanto, se expandido além das muralhas (sentido militar original). As grandes cidades do mundo greco-romano estão vinculadas a portos mediterrâneos por onde circulava toda a riqueza do império. Algumas outras eram postos de comércio terrestre como Palmira e Damasco, entre outras. Segundo indica Roberto Zwetsch, citando, Nélio Schneider, o Evangelho de Jesus se expande desde os pequenos povoados até Jerusalém, de Jerusalém, através das rotas comerciais ao todo o mundo greco-romano .
Neste processo temos também a teologia anti-cidade e teologia da cidade utópica. Jesus rejeitou Jerusalém e seu templo como centro de fé. O registro dramático das suas lágrimas sobre Jerusalém carrega a acusação profética de cidade assassina (Mt 23.37-39; com paralelo em Lucas 13.34). No entanto, também aqui é tratada como uma mãe. Deus se apresenta como uma galinha ajuntando seus pintinhos debaixo das assas, isto é, uma dupla figura feminina, tanto para a cidade quanto para Deus. Jesus manda seus discípulos e discípulas para uma missão urbana, onde deviam levar a mensagem da Paz, com a metodologia de casa em casa, curando e libertando pessoas de suas aflições. Ficando, no entanto, caso a proposta de paz fosse rejeitada, um julgamento que remete a teologia anti-cidade do livro de Gênesis (Mt 10.11-15).
A cidade utópica aparece com força no livro de Apocalipse. Aqui de novo temos elementos comuns ao seu surgimento no Primeiro Testamento. A cidade nasce no contexto de uma duríssima perseguição perpetrada por um império e sua cidade capital (Roma). Jerusalém encontra-se novamente destruída, assim como o templo (o que aconteceu mais de 20 anos antes). A fé cristã já se espalhou por boa parte das cidades do império e o imaginário urbano está bem presente, especialmente entre aquelas sete comunidades da Ásia Menor para as que o texto é dirigido (cf. Ap 2-3). A primeira geração tinha sido assassinada e uma nova geração encontra na Jerusalém utópica a expressão de uma alternativa urbana como expressão da plenitude da realização da vontade de Deus (Ap 21.10-27). Ela é o projeto oposto das cidades assassinas do império que promoviam todo tipo de exploração, engano, injustiça e maldade. Nela reina Jesus e todas as pessoas que lutando pelos princípios da justiça tornaram-se vítimas da repressão! (Ap 22.14-15).
Será que só podemos sonhar com uma cidade alternativa quando as outras referências foram totalmente destruídas? De certa forma parece que sim. Por isso parece adequado falar em termos de re-fundação, mais do que re-construção. Quando ainda sobra algo da cidade opressora e seu sistema é que se pensa em reconstrução, mas esse caminho nos leva de volta à mesma cidade, ao mesmo templo, ao mesmo sistema. Quando nada sobrou parece que se ganha a liberdade de re-fundar e aí o projeto de Deus pode ser considerado como a pedra que os construtores rejeitaram e que se torna novo alicerce (Mt 21.42; At 4.11).
Na re-fundação e não na reconstrução a juventude tem um papel importantíssimo no processo. Claro que devemos sempre ter claro que juventude é um estado transitório do ponto de vista etário, mas um ganho permanente para quem teve a oportunidade de participar de re-fundações neste período da sua vida . Por outro lado, a juventude é contagiante e se multiplica em todas as pessoas e em todas as etapas da vida!

3. A experiência urbana no Brasil e no mundo

No Brasil houve uma inversão porcentual, levando a mais de 80% de pessoas morando em cidades e apenas 20% no meio rural, quando nas origens do Brasil a proporção era inversa. Essa concentração produz vários efeitos negativos bem visíveis:

• Surgimento de grandes concentrações populacionais nas periferias, e fora delas, onde há péssimas condições de vida e grandes índices de violência.

• Isolamento das elites em condomínios e outras estruturas sociais semelhantes aumentando os conflitos políticos, econômicos e culturais entre as classes.

• Poluição e destruição do meio ambiente tanto por empreendimentos dos setores abastados e concentradores de riqueza, quanto pelo descontrole da ocupação por migrações de pessoas externas (êxodo rural) ou internas (grupos empobrecidos da própria cidade empurrados por empreendimentos ou obras urbanas).

• Propensão a grandes catástrofes por questões ligadas fenômenos “naturais”, epidemias, etc; devido à grande concentração populacional com pouca estrutura preventiva e baixa qualidade de vida.

• Disseminação de culturas violentas e de intolerância ligadas à expressões culturais, esportivas ou políticas, que levam ao enfrentamento e morte principalmente de pessoas jovens.

No entanto, a juventude está profundamente ligada ao mundo urbano, em primeiro lugar porque a maior parte das pessoas jovens mora neste meio. O meio urbano é também, hoje mais do que nunca, um caldeirão cultural onde a juventude se alimenta de diversas referências. Não há como apresentar, portanto, uma alternativa não-urbana para o desenvolvimento urbano atual. Não é possível apenas opor “campo x cidade”. Boa parte da juventude rural já está culturalmente urbanizada via TV e WEB.
Não podemos pretender que “todas as juventudes” sejam portadoras de uma utopia urbana, mas devemos sim lhes dar a chance de sonhar e transformar os sonhos em projeto. Há, como no exílio, certa urgência, pois as cidades representam o cruzamento entre vida e morte para a humanidade. Não haverá uma salvação para a vida que não passe por uma nova urbanidade e cabe a nós, junto com as juventudes de fé, encontrar o caminho divino, feminino, gerador e re-fundador de um projeto de urbanidade. O caminho de volta está aberto, vamos percorrê-lo junto, “uma nova cidade é possível”!



Revdo. Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves (humbertox@uol.com.br)