13 julho 2011

Texto do Revdo. Carlos Eduardo Calvani para a reflexão sobre Inclusividade na IEAB

A experiência missionária Anglicana em Campo Grande

Rev. Dr. Carlos Eduardo Calvani

Ministro Encarregado da Missão da Inclusividade em Campo Grande MS.

Coordenador de Centro de Estudos Anglicanos (CEA)


Inicialmente, parabenizo a direção do Seminário por essa iniciativa de dar visibilidade a novas experiências missionárias que surgem na IEAB. Sempre entendi que um Seminário não deve ser apenas uma escola na qual se estudam conteúdos teológicos, mas um centro de pesquisa e vanguarda da Igreja, atento aos novos desafios que o mundo nos apresenta. Seminários não devem ser apenas instituições de reprodução, mas sobretudo de produção intelectual com vistas à missão. Nesse caso, o SETEK tem, ao longo de sua história, uma inestimável contribuição à prática pastoral e missionária da IEAB, como vanguarda teológica.

Pretendo expor brevemente a experiência missionária que temos vivido há um ano e dois meses em Campo Grande, capital do MS. Infelizmente, ao longo de 120 anos de história, a IEAB nunca enviou um missionário para trazer a essa cidade a nossa compreensão do evangelho. A história religiosa da cidade é marcada pelo forte predomínio da Igreja Católica Romana e, nos anos mais recentes pelo crescimento das igrejas evangélicas de cunho pentecostal e neopentecostal.

Quando aqui chegamos em março de 2010, não tínhamos qualquer contato. Inicialmente, solicitei a todos os bispos e a vários colegas do sul que tentassem se informar sobre famílias episcopais-anglicanas residentes em Campo Grande. Há muitos CTGs na cidade e imaginávamos que, dentre a colônia gaúcha poderíamos encontrar algumas famílias episcopais. Porém, um ano depois, só conseguimos localizar uma família, procedente de Santa Maria e que hoje é freqüentadora assídua, além de outro jovem, de origem japonesa, procedente de Curitiba.

Sem qualquer apoio financeiro para a missão, alugamos uma casa com uma grande sala que foi “sacrificada” para transformar-se em capela permanente. Comecei a enviar emails a pessoas da Igreja solicitando que contribuíssem com o valor de R$ 1,00 (um real) por dia, o equivalente a um depósito mensal de R$ 30,00 (trinta reais). Com as primeiras ofertas que chegaram, compramos 10 cadeiras de plástico e um tablado de madeirite para servir como altar. Aos poucos alguns colegas conseguiram a doação de cálice, patena, corporais e linhos para o altar. Também utilizamos o valor das ofertas para imprimir um folder de propaganda da Igreja, que começamos a distribuir no bairro e também às pessoas com quem fazíamos amizade.

A primeira celebração foi assistida apenas por curiosos. Nos domingos seguintes a curiosidade diminuiu e durante três ou quatro meses, apesar dos muitos convites pessoais e por email, apenas nossa família (Ingrit, eu e as crianças) celebrávamos a liturgia anglicana em louvor a Deus. Houve momentos de muito desânimo, mas sempre nos tranqüilizávamos pensando ser ainda o tempo da semeadura. Uma noite, após vários domingos sem a presença de nenhum visitante sequer, sentei-me desanimado para meditar; abri uma cerveja e olhei o céu estrelado. Foi inevitável a lembrança da promessa de Deus a Abrão: “sai da tua tenda e tente contar as estrelas do céu... assim será tua descendência”. Tomei a lembrança desse texto como uma promessa para o futuro da IEAB em Campo Grande, e entreguei o futuro dessa missão à soberania e vontade de Deus, esperando pelo tempo oportuno da colheita dos primeiros frutos.

No domingo seguinte, um casal começou a freqüentar. Nos domingos seguintes, outro casal e outras pessoas começaram a aparecer, e iniciamos um forte incentivo à vida comunitária, com almoços e churrascos. Naturalmente, não negligenciei a visitação nas casas, sempre colocando-me à disposição, como sacerdote, para orar pelas pessoas e acompanhá-las em suas dúvidas.

Por outro lado, percebi desde cedo, que a maioria dos freqüentadores era oriunda de igrejas evangélicas pentecostais, decepcionadas com a falta de profundidade teológica dessas comunidades. Alguns eram também oriundos da Igreja Católica, mas por serem descasados, não encontravam espaço. Essa constatação serviu-me como um alerta para não cair em “armadilhas” que às vezes apareciam, tais como as sugestões de inserir cânticos gospel dessas comunidades ou momentos de “oração espontânea”. Logo percebi que se eu permitisse, aos poucos a liturgia anglicana seria subvertida e nos transformaríamos em uma igreja igual às outras. A fim de evitar problemas futuros, nos domingos seguintes passei a preparar as liturgias como se estivesse em uma Catedral. Embora fôssemos um pequeno grupo, consegui vários LOCs e Hinários, bem como a gravação de hinos clássicos em MP3 para serem usados durante as celebrações. Algumas pessoas estranharam e não retornaram, mas muitos se surpreenderam com a qualidade musical e estão conosco até hoje.

Aos poucos os freqüentadores foram também começando a compreender o significado do nome da Capela: “Capela da Inclusão”. Sempre frisamos e em nenhum momento ocultamos o fato de que nossa Igreja talvez seja uma das poucas no Brasil a tratar de modo franco, aberto e maduro, a questão da sexualidade e homossexualidade. Nenhum dos freqüentadores poderia dizer futuramente que foi pego de surpresa, caso tivéssemos freqüentadores assumidamente gays ou lésbicas ou se recebêssemos um clérigo gay para pregar.

O aumento no número de freqüentadores exigiu que procurássemos um local maior para as celebrações, e isso aconteceu em fevereiro deste ano, quando alugamos um espaço com capacidade para 80 pessoas. Naturalmente, todo caixa comunitário foi comprometido na aquisição de mais 40 cadeiras, pintura, comungatório e outras necessidades, além do compromisso mensal com aluguel, água e luz. Contudo, damos graças a Deus porque até o momento, essas necessidades estão sendo supridas por absoluta generosidade de pessoas de várias dioceses que, eventualmente, nos enviam uma oferta. A partir de abril, a Secretaria Geral assumiu o compromisso de nos apoiar com o pagamento do aluguel, o que muito nos aliviou. Isso é sinal de que iniciativas missionárias sempre mobilizam a Igreja para contemplar o futuro e não apenas a manutenção do passado.

Sobre a Pastoral da Diversidade Sexual, alguns esclarecimentos devem ser feitos. Eu conheci a iniciativa do rev. Elias Vergara em Goiânia e fiquei encantado com a seriedade como esse assunto é tratado naquela região, tendo inclusive sido reconhecida como uma pastoral diocesana. Também conheci o trabalho do rev. Arthur em São Paulo, com o Coral da Diversidade, e sabíamos que esse assunto também mereceria especial atenção em Campo Grande.

Conversando com o rev. Elias Vergara, aprendi que o processo dessa Pastoral vai muito além do foco na homossexualidade. Inicialmente a pastoral chamava-se “Pastoral homossexual”, mas na medida em que eram levantadas questões tais como preconceito e a dificuldade no relacionamento com parentes próximos (pais e mães, irmãos e irmãs ou mesmo filhos), além dos problemas nas relações no emprego e a própria auto-aceitação das pessoas LGBT, o leque se expandiu para incluir também o debate com essas pessoas, que não fazem parte do grupo LGBT, mas que estão em seu círculo de relacionamentos interpessoais diários. Nas reuniões em Goiânia afloravam também outros assuntos tais como impotência masculina ou frigidez feminina, compulsões sexuais em ambos os sexos, fantasias reprimidas, a criação dos filhos, experiências sexuais da infância e adolescência, pedofilia, assédio ou abuso sexual. Enfim, o leque era tão vasto, que o foco não estava apenas na questão homossexual, mas na diversidade das práticas sexuais em nosso tempo. Desse modo, entendemos que em Campo Grande a situação seria a mesma e, por isso, optamos por utilizar o nome “Pastoral da Diversidade Sexual”, a fim de incluir também o diálogo com pessoas hetero em relação constante com o público LGBT.

Naturalmente, logo começaram a surgir problemas que se refletiram na comunidade e que até hoje estamos administrando. Em novembro do ano passado, dei uma entrevista na Rede Globo e em um jornal da cidade. A Globo foi bastante profissional, mas o jornal deturpou a entrevista através de uma matéria que anunciava em letras grandes: “Padre anglicano quer fazer mutirão para casamentos gays”. Em função dessa matéria tive que redigir uma matéria intitulada “10 esclarecimentos sobre notícias da mídia em Campo Grande”, e que está até hoje em nosso site:

http://paroquiadainclusao.com/site/2010/11/29/ainda-sobre-as-noticias-na-midia/ .

Nesse texto esclareço, entre outras coisas, que A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil tem diversas pastorais sólidas organizadas em todo Brasil com diversos segmentos da população, principalmente pessoas pobres, crianças carentes, pessoas marginalizadas, sem-terra, sem-teto, populações indígenas, quilombolas, moradores de rua, idosos, etc. Dentre essas diversas pastorais, algumas de nossas paróquias também perceberam a necessidade de defender a dignidade das pessoas homoafetivas. Ou seja, essa Pastoral é apenas uma dentre tantas outras belas e nobres iniciativas da Igreja, e não é nosso foco principal, mas parte da totalidade da missão de nossa Igreja; e que mantemos claramente nossos princípios éticos, tais como, não apoiar a pedofilia, a exploração sexual ou a promiscuidade, por entender que tais práticas ferem a dignidade humana. Esse esclarecimento foi importante para não imaginarem que somos uma Igreja só de gays, mas uma igreja muito séria, que aceita as pessoas e ao mesmo tempo alerta para os riscos da permissividade sexual (doenças sexualmente transmissíveis, gravidez precoce, etc). Apesar da mídia, a repercussão para a Igreja foi muito boa, pois logo fui procurado pela Associação dos Travestis e Transexuais do MS, que me convidou para ser seu capelão. Desde então, eventualmente tenho tido o privilégio de reunir-me com elas, orar, louvar a Deus e celebrar com elas os santos mistérios da fé.

Recentemente participei de um debate na Secretaria de Cultura do MS, e frisei um ponto que ainda precisamos insistir: a IEAB não é uma igreja de gays e lésbicas, como algumas pessoas insistem em dizer. A IEAB é simplesmente uma igreja que vive a catolicidade de modo real, sem discriminar ninguém. Precisamos assumir sem medo, quem somos e que Igreja é essa, sem medo das reações católicas romanas ou de escandalizar os evangélicos. Nessas igrejas a discussão já acontece subterraneamente, e podemos dar um belo exemplo de amadurecimento para que outras igrejas o sigam também.

Outro momento complicado aconteceu agora um mês atrás, quando participei de uma sessão na Câmara dos Vereadores, apoiando exatamente um requerimento de concessão do título de utilidade pública para a Associação dos Travestis. Na ocasião, fui abordado de modo agressivo por um pastor batista, e na mesma semana, relatei em um jornal da cidade, o episódio através do artigo “meu encontro com um homofóbico” (anexo). Na semana seguinte recebi vários emails de evangélicos radicais protestando e até mesmo ameaçando atrapalhar nossas celebrações com piquetes. Um dos emails me chamava de gay. Respondi dizendo que não me ofende ser chamado de gay, mas que não lhes daria jamais o prazer de ser chamado de pastor evangélico porque, na atual circunstância, isso certamente seria grande ofensa. Até parece que nessas igrejas não existem pessoas homossexuais, inclusive pastores e pastoras.

Certamente o mais traumático para minha esposa, foi receber um telefonema dizendo “vocês merecem morrer!”. Campo Grande é uma cidade infestada pelo fundamentalismo evangélico e pentecostal, e eles se julgam os donos da cidade. Porém, esses acontecimentos, ao invés de me desanimar, me encheram de revolta e respondi a todos os emails com o texto “homofobia e neonazismo”, também disponível em nosso site: http://paroquiadainclusao.com/site/2011/05/22/homofobia-e-neonazismo/. Essa resposta, pelo jeito foi bem recebida, pois pararam com os emails e telefonemas. No fundo, os evangélicos radicais de Campo Grande são muito covardes, pois bastou mostrar-lhes que não os tememos, que pararam de rosnar e latir.

Não posso negar que tais episódios abalaram a vida comunitária. Alguns casais e outras pessoas, por motivos diversos (alguns assustados, outros temerosos de serem identificados como homossexuais ou promíscuos), diminuíram a freqüência e a participação. Isso nos trouxe certa decepção, pois imaginávamos ter deixado claro que somos uma família hetero, mas que, em virtude do conhecimento da graça imerecida e do amor de Deus, temos a obrigação de acolher a todas as pessoas.

Às vezes ouvimos pessoas dizendo: “a IEAB é uma igreja liberal... cheia de descasados, divorciados, gays, etc...”. Muito bem! É isso mesmo! Graças a Deus! Talvez sejamos uma das poucas igrejas no Brasil em que há espaço para essas pessoas, e não temos que nos envergonhar disso. Ao contrário – para mim é motivo de orgulho dizer que somos essa igreja sim. Isso me faz recordar as belas palavras finais do hino 306 (“e quando o monumento surgir em plena luz, a glória do edifício será do Rei Jesus”) – Todos sabemos que, teologicamente, a Igreja (e agora falo do corpo místico de Cristo), está em construção, e ainda não se revelou plenamente sua face.

Todos nós sabemos que há muitos gays e lésbicas em nossa Igreja. Também conhecemos pessoas do clero (alguns assumidos enquanto outros/as, por razões particulares, insistentemente ainda “no armário”). Nosso atual secretário-executivo da IEAB lidera uma bela comunidade inclusiva em São Paulo e recebeu um importante prêmio do governo paulista (O Selo da Diversidade) por seu trabalho de inclusão. Isso tudo é amplamente noticiado e basta abrir o site da IEAB e já veremos a foto desse evento.

Nossa pequena Igreja tem o grande potencial de dizer que as pessoas homoafetivas são parte da Igreja, sim – elas não estão batendo na porta implorando para serem recebidas. Elas já são Igreja. A grande maioria é batizada, e se foi batizada na IEAB, ouviu a declaração de nosso rito: “És de Cristo para sempre!”. Boa parte dessas pessoas já foi confirmada ou crismada (ou fez “profissão de fé” em suas respectivas igrejas), e sobre elas repousa a oração que os bispos fazem na confirmação, dizendo que estão “vinculadas ao serviço de Cristo”. Boa parte dessas pessoas homoafetivas comunga, freqüenta a Igreja, participa e contribui financeiramente com seu dízimo. Uma parte dessas pessoas buscou o ministério ordenado e recebeu a imposição de mãos para se tornarem vigários (representantes) de Cristo e de seu amor junto ao povo. Ou seja, essas pessoas não precisam de complacência, mas de respeito. Elas já são da Igreja, e o apoio a elas nada mais é do que cumprir nossos votos de confirmação e da aliança batismal : “Defenderás a justiça e a paz para todos, respeitando a dignidade de todo ser humano”. Por isso insisto em dizer que, embora respeite o trabalho da Igreja Cristã Metropolitana, não sou favorável à criação de “igrejas-gay”, porque isso só reforça o gueto e a discriminação. Se a Igreja é realmente “católica”, deve ser inclusiva, para todos, porque, como dizemos em Campo Grande, “a verdadeira catolicidade está na inclusão”.

Em função dessa consciência de quem somos, estamos vivendo aqui em Campo Grande um momento difícil na vida comunitária, a ponto de eu questionar nossa permanência nessa cidade. Talvez seja o momento de a IEAB enviar outro missionário para cá. Porém, certamente, eu não deixaria a cidade enquanto houver uma pessoa precisando de nossa presença aqui, a menos que a IEAB envie outra pessoa para continuar o trabalho. Afinal, como diz Paulo em I Coríntios, “um planta, e outro rega, mas é Deus quem dá o crescimento”. Além disso, pesa para nós não apenas a responsabilidade, mas também o amor e a preocupação que temos para com todas as pessoas que freqüentam a Capela. Talvez um dos seminaristas ou das seminaristas que esteja acompanhando essa palestra, anime-se a pôr a mão no arado e assumir um campo missionário tão desafiador como o do Mato Grosso do Sul.

Apesar da insegurança em relação ao futuro, mantemos nossa missão aqui, vivendo absolutamente da graça de Deus. Em maio celebrei a primeira bênção de união do mesmo sexo no estado do MS, mas sem alarde, e as fotos estão em nosso site: http://paroquiadainclusao.com/site/anglicanos-em-campo-grande-ms/casamentos/ . Agora em setembro celebrarei outra bênção, dessa vez em nossa Capela. Porém, nossa Igreja ainda está tímida demais nesse assunto, e às vezes me parece que ela tem apenas um “verniz” liberal, com um fundo muito conservador. Sabemos que bênçãos semelhantes já têm sido realizadas em vários lugares do país, mas até agora a Comissão Nacional de Liturgia ainda não se debruçou na elaboração de um rito próprio. Particularmente, tenho comigo ritos alternativos das Igrejas Anglicanas do Canadá, EUA, Inglaterra, Escócia e de Igrejas luteranas da Escandinávia e penso que o Seminário poderia muito bem liderar a elaboração de um rito próprio, com prefação, votos, etc... a partir da experiência de outras igrejas no exterior.

Finalmente, quero dizer-lhes que não temam conviver com as pessoas diferentes. Vocês descobrirão que são pessoas lindas, amorosas e ao mesmo tempo carentes de amor, e que quando se sentem acolhidas e bem recebidas, se tornam prestativas, carinhosas e verdadeiramente amigas. A graça e o amor geram retribuição em amor.

Temos um grande potencial no Brasil - não para ser uma igreja só do público LGBT. Sempre dizemos para as pessoas que o grande desafio, para o próprio bem da causa LGBT é mostrar a possibilidade de conviver com famílias, crianças, sem causar polêmicas e escândalos. Talvez nosso desafio maior seja assumir quem, realmente somos, e preservar nossa liturgia, nossos hinos e nossa compreensão do evangelho, sem medo das reações católicas ou evangélicas. Quando aconteceram esses episódios em Campo Grande e algumas pessoas se afastaram da comunidade, minha esposa perguntou: “e se as famílias pararem de freqüentar?”. Realmente, esse é um medo que temos e que não desejamos que aconteça, porque confiamos na maturidade das pessoas. Mas o que pude responder, simplesmente foi: “Ficaremos com o rebanho que Deus deixar conosco!”.

Agradeço à direção do Seminário a oportunidade de expor essas idéias, desejando muitas bênçãos ao reitor, à Coordenadora pedagógica, professores e professoras, funcionários e estudantes. Somos uma pequena Igreja no Brasil, mas a única Igreja de vanguarda, comprometida com o cristianismo do futuro e não do passado, pois no futuro, quando as pessoas homossexuais se assumirem com menos medo do que hoje, certamente haverá uma Igreja para que elas possam orar, louvar a Deus, comungar e crescer no conhecimento do amor de Cristo.

Lembrem-se do hino que entoamos: “Há muito o que fazer neste país, não basta acreditar na tradição... Igreja a gente vive com paixão!”.

05 julho 2011

A Bíblia e o anglicanismo depois da reforma



TRÊS GRANDES CONTRIBUIÇÕES E REFERÊNCIAS PARA HERMENÊUTICA BÍBLICA ANGLICANA

Revdo. Dr. Humberto Maiztegui Gonçalves

Professor de Bíblia na perspectiva anglicana.

Curso de Imersão no Anglicanismo - SETEK – 2011.

As Escrituras Sagradas ocupam um espaço de especial carinho dentro da teologia e, até mais, da espiritualidade anglicana. Os três exemplos aqui selecionados mostram essa “paixão bíblica” vivida no anglicanismo: William Tyndale (na luta pelo acesso universal à Bíblia, no fim do século 15 e início do século 16), Richard Hooker (contribuindo para as bases da reforma anglicana do século 16) e, mais próximo, no final do século 19, Brooke Foss Wescott (refletindo o advento do Método Histórico Crítico na análise dos textos bíblicos).

Outros nomes poderiam também servir como referência, como E.C. Hoskyns (1884-1937)e William Temple (1881-1944) ambos mencionados no livro do Arcebispo Rowan Williams (traduzido ao espanhol) “Identidades Anglicanas”, dentro do capítulo dedicado aos comentários feitos por estes estudiosos ao Evangelho segundo João[1]. Estas aproximações ao Evangelho mais interpretado no anglicanismo, e fonte de inspiração da Conferência de Lambeth dirigida pelo próprio Arcebispo Williams, em 2008, permitem que o autor afirme:

Se vamos extrair alguma conclusão deste percurso pontual da exegese anglicana, quiça seja esta: se a mediação histórica resulta essencial para uma retomada distinitivamente cristã do conhecimento de Deus, que a história deva ser vista, sempre e irredutivelmente, como Outra para nós (...)[2].

Neste trabalho, estamos em busca dos “outros” e “outras”. Os “outros” que leram a Bíblia refletindo seus próprios contextos e desafios, mas que, mesmo distantes e distintos, nos apontam caminhos de compreensão da revelação divina dentro do anglicanismo. As “Escrituras”, como estes exemplos mostram, encontraram dentro do anglicanismo um forte eco para sua pluralidade e diversidade. Estes intérpretes das Escrituras, e adoradores do grande “Outro” divino, souberam reconhecer que os textos sagrados eram, por sua vez, apresentados por “outros” e “outras”, que participaram dos eventos reveladores, que foram portadores e portadoras de memórias e tradições, que foram antes adoradores e adoradoras das verdades reveladas. A Bíblia trazida pelas mãos de outras pessoas primeiramente expressa seus próprios contextos, este também distinto ao dos hermenêutas anglicanos aqui citados, tanto quanto ao nosso contexto atual. Contudo, é possível reconhecer na leitura bíblica o milagre quando, mesmo com toda sua diversidade e distância, Deus consegue revelar verdades eternas e falar coisas novas para cada geração.

Por isso reafirmamos que aprender do passado nunca é repetí-lo, mesmo naquilo que avaliamos positivamente. Aprender do passado é aprender a dialogar, é aprender sobre troca e partilha, um processo que certamente é essencial para a o ethos (forma de ser) e identidade do anglicanismo.

Tyndale: As Escrituras como um dom de Deus para todo seu povo

O contexto histórico da vida e morte de William Tyndale se increve dentro da polêmica em torno do acesso universal às Escrituras. Nas Ilhas Britânicas existiram experiências de tradução da Bíblia ao vernáculo desde os séculos VII e VIII. Ao que tudo indica a primeira tradução de parte da Bíblia ao inglês foi feita pelo Bispo de Shurborne, Adelmo (Adhelm) que viveu entre 656 e 709. O venerável Beda (672-735) teria também feito uma tradução cuja extensão é desconhecida, mas se sabe que, na noite da sua morte, ele estaria, com ajuda de um secretário, finalizando a tradução do Evangelho segundo São João. Outra tradução de toda a Bíblia é atribuída ao rei Alfredo (849-901), alguns trechos que foram preservados em museus e bibliotecas da Grã Bretanha poderiam fazer parte deste trabalho[3] . No entanto, essas traduções ficaram restritas a círculos fechados em mosteiros ou bibliotecas durante séculos.

Segundo Blunt, durante e depois do século XVI ainda dividiam-se as opiniões sobre o acesso irrestrito às Escrituras para todas as pessoas e a capacidade de interpretar e aprender das pessoas comuns. O Arcebispo Cramer, no prefácio da “Grande Bíblia” (Great Bible) expressou seus argumentos em favor da tradução ao vernáculo:

Se uma questão pode ser provada pelo costume, nos podemos também alegar o costume da leitura da Escritura na língua popular, e abolir os costumes mais antigos. Sendo assim, a não mais do que cem anos atrás não se costumava ler a Bíblia na lingua popular dentro deste estado. Algumas centenas de anos atrás disso, foi traduzida e lida na lingua saxônica, que, nesse tempo era nossa língua materna: do que ainda restam diversas copias nesta antiga forma de escritura e fala, encontradas posteriormente em velhas abadias, que poucos homens de hoje têm condições de ler e entender. Quando esta língua tornou-se velha e fora do uso comum, porque o povo não teve a sorte de desfrutar da sua leitura, foi novamente traduzida para uma nova linguagem, da que também restam muitas cópias, que podem ser encontradas diariamente[4].

Antes disso, A tradução de Wickliffe (Wyclif) foi proibida de circular pela constituição do Arcebispo Arundel, por volta de 1408, assim como qualquer outra tradução feita antes ou depois, até que ditas traduções fessem aprovadas pelo bispo diocesano ou, necessariamente, pelo sínodo provincial. O medo do acesso universal à Bíblia se expressa fortemente na manifestação do Arcebispo Warham em 1526, para quem as novas traduções acabavam “gotejando heresias perniciosas e escandalosas nas mentes da gente simples, e profanando assim a imaculada magestade das Santas Escrituras através de nefastos e distorcidos comentários”[5].

A questão da autoridade na leitura e interpretação popular da Bíblia não é algo totalmente superado. Mesmo que hoje proliferem versões em centenas de línguas diferentes, o centro da discussão se volta para a validade da interpretação popular da Bíblia. Dom Sebastião Gameleira Soares resume bem este debate na atualidade:

Não se trata para nós de criar novos métodos de leitura no sentido de novos instrumentos exegéticos de exploração científica dos textos. O que enfatizamos é um novo enfoque e um novo jeito de ler (...) Quando falamos de leitura popular, queremos referir-nos à leitura da Bíblia a partir da opção de solidariedade política com o povo, exigência do amor de Deus: “charitas Christi urget nos”. Lê-se a Bíblia a partir das necessidades e das grandes questões que marcam a vida dos oprimidos (...) Leitura popular é também um movimento de solidariedade social (“êxodo”), é ler a Bíblia junto com as comunidades pobres, partilhando o saber, o que, em última análise, equivale a partilha do poder com as pessoas pobres concretamente diante de nós[6].

A contribuição de Tyndale, que por sua vez é continuidade das opções feitas por Wickliffe e os tradutores ainda anteriores a ele, não deve ser vista como uma questão técnica do processo de tradução das Escrituras, mas como o reconhecimento de que a revelação nasce do protagonismo popular.

DADOS BIOGRÁFICOS : William Tyndale (1492-1536)

William Tyndale nasceu em Gloucestershine, Inglaterra, entre 1492 e 1494, estudando em Oxford e depois em Cambridge. Em 1522 decidiu traduzir a Bíblia para o inglês mas, o Bispo de Londres, Cuthbert Tnstall, lhe negou apoio. A idéia de traduzir a Bíblia ao vernáculo foi rejeitada tanto pelos setores mais católicos (ligados à versão latina) quanto por renomados humanistas como Fisher, More, William Latimer e o próprio Erasmo. A reação a este tipo de abordagem da Bíblia baseava-se na experiência de Lutero que já tinha publicado sua obra na Inglaterra em 1520. Assim, como apoio de alguns patrocinadores, Tyndale foi para Hamburgo na Alemanha (1524), visitando Lutero em Wittemberg.[7]. Em 1525 iniciou a impressão da sua tradução em Colonia (Alemanha) terminado o projeto em Worms no fim desse ano. Em 1534, depois ter recebido algumas críticas dos seus oponentes e ter sua obra proscrita, Tyndale fez uma revisão da sua tradução com ajuda de Miles Coverdale, que, conforme conta Roland Mushat Frye, teria finalizado sua obra depois da sua prisão e morte[8]. A versão final de Tyndale e Coverdale foi publicada finalmente em 1537, com autorização do rei Enrique VIII, sob o nome “Matthews Bible” (disfarçando assim sua prescrição anterior)[9].

Quando Tyndale teve seu trabalho publicado na Inglaterra foi denunciado pelo Arcebispo Wareham e por Thomas More. Seus escritos, por exemplo, “A parábola do fraco Mamon”(1528) e “A obediência do homem cristão”(1528) revelam sua proximidade com Lutero, especialmente na sua insistência sobre a autoridade das Escrituras e a primazia da fé. William Tyndale foi a julgamento por heresia em Vilvorde, perto em Bruxelas, sendo depois enforcado e queimado em outubro de 1536.

A oposição ao direito de gente simples do povo ter acesso as Escrituras continuou após a morte de William Tyndale. Stephen Gardiner foi o novo algoz desta iniciativa, substituindo Thomas More, encontrando sucesso na última parte do reinado de Enrique VIII. Em 1543, o rei declara que a tradução de Tyndale era “falsa e mentirosa” e decreta que “ninguém entre mulheres, artesãos, aprendizes, jornaleiros, serventes no nível de pequenos proprietários rurais ou menos, lavradores ou operários podem ler a Bíblia ou o Novo Testamento em inglês para si mesmos ou para qualquer outro em privado ou abertamente”[10].

As traduções de Tyndale mostraram sua refinada e memorável linguagem. Receberam elogios de Thomas Cramer, afirmando que “até este tempo os bispos não poderão encontrar uma tradução melhor” e que ele pensava que não haveria uma melhor até o dia do juízo final[11]. Finalmente a qualidade do trabalho de Tyndale fez como seu trabalho fosse resgatado, em grande parte, na versão posterior de “King James”, em 1661 (equivalente à versão de João Ferreira de Almeida, em português).

A carta de Tyndale oferecendo uma Bíblia para todos (1525-1526)

Não foi fácil encontrar um texto disponível que expressasse a convicção de William Tyndale em relação ao acesso popular às Escrituras Sagradas do Cristiansmo. No entanto estas palavras carinhosas e humildes de Tyndale às pessoas que serão destinatárias do seu trabalho carregam uma rica mistura de sentido do serviço, humildade, compromisso e, um grande carinho devocional pelo sentido espiritual da Bíblia na edificação da Igreja como Corpo de Cristo.

Ao leitor

Tenho aqui traduzido, irmãos e irmãs, muito queridos e ternamente amados em Cristo, o Novo Testamento, para sua edificação espiritual, consolação, e conforto; exortando imediatemente e suplicando àqueles que são melhores no estudo das línguas que eu, e àqueles que tem melhores dons da graça para interpretar o sentido da Escritura e significado do Espírito que eu, a considerar e ponderar meu trabalho, e com espírito de brandura; e se eles percebem em algum lugar que eu não tenho me atido ao verdadeiro sentido da língua, ou ao significado da Escritura, ou não tenho usado a palavra certa em inglês, que eles se ponham com suas mãos a emendar ela, lembrando que é seu dever fazê-lo. Por isso é que não temos recebido os dons de Deus somente para nós mesmos, ou para escondê-los, mas para entregar eles para a glória de Deus e Cristo, e edificar a congregação, que é o Corpo de Cristo (até aqui o prólogo da edição de 1525).

Logo eu espero que tenahmos aprendido o Cristianismo, visto que como eu estou convencido, e minha consciencia me fez registrar, que por uma tentativa pura, simples e cheia de fé, tenho interpretado ela, tanto quanto Deus me deu o dom do conhecimento e do entendimento, que a rudeza do meu trabalho, agora por primeira vez não lhes ofenda; mas que considerem que eu não tive nenhum homem para corrigir, nem fui ajudado no inglês ou por outro que tenha interpretado o mesmo ou coisa semelhante na Escritura antes de mim. Além disso, sempre é muito necessário, e embaraçoso (Deus sabe) sob poder, que eu tenho treinado, menos do que podiamos esperar o elogio de nós mesmos, por causa das muitas coisas que são menos que o se requer como necessário. Conto estas como coisas que não tiveram sua forma completa, mas que nasceram antes do seu tempo, mesmo como uma coisa iniciada tano quanto terminada. No tempo que há de vir (se Deus apontar que nós estejamos nele) daremos sua forma completa, e retiraremos se algo colocamos superficialmente, e colocaremos se algo foi deixado de ver pela negligência, e nos esforçaremos tornar compreensível o que agora foi traduzido de passagem, e para levar luz onde isso é requerido, e para expor as palavras que não são comumente usadas, e mostrar quanto a Escritura usa muitas palavras que são também entendidas pelo povo comum, e para ajudar com uma declaração quando uma língua não pode ser levada à outra; e nos envolver, onde seja, a expreme-la melhor, e a fazê-la mais apta a lembrar do seu dever, e ajuda-los nisso, e a levar para a edificação do corpo de Cristo, que a congregação dos que crêem, aqueles dons que têm recebido de Deus para o mesmo propósito.

A graça que vem de Cristo seja sob aqueles que o amam. Orem por nós (Epilogo da edicção de 1526)[12].

A hermenêutica a serviço do Corpo de Cristo

Podemos destacar alguns aspectos desta terna comunicação que, ao nosso ver, resultam extremamente relevantes para a continuação do processo de reapropriação das Escrituras por parte do Corpo de Cristo como um todo. Em primeiro lugar o autor deixa claro sua tarefa de servo como tradutor das Escrituras sujeito a erros que ele indentifica principalmente em duas áreas: a linguística (proveniente da dificuldade de colocar o sentido original das línguas bíblicas em uma correta versão da língua para a qual estão sendo traduzidas) e a hermenêutica (proveniente da dificuldade de entender o sentido do texto além do puramente literal, já que toda língua expressa um contexto simbólico e cultural). Portanto, ao se desculpar pelos possíveis erros e autorizar, ou até desafiar a assumir o compromisso cristão de compensá-los e corrigí-los, ele assume a provisoriedade e relatividade de qualquer versão das Escrituras.

Este sentido diaconal do trabalho do tradutor transforma-se para nós em um forte argumento contra o fundamentalismo bíblico ou qualquer outra interpretação meramente literalista (mesmo quando realizada dentro de moldes exegéticos). Todas as pessoas que traduzem ou interpretam as Escrituras deveriam se espelhar nesta consciência de Tyndale, sabendo que estão sujeitos a erros, a interpretações parciais, a maus entendidos literais, tanto quanto qualquer leitor ou leitora. Portanto, todo trabalho de tradução é, e sempre será, mais uma forma de hermenêutica sujeita a intepretação crítica tanto de especialistas (a partir de conhecimentos linguísticos e exegéticos) quanto de todo o povo (a partir de sua experiência de fé e vida).

O trabalho de especialistas e a leitura popular

Nas últimas palavras deste extrato Tyndale deixa claro que, nas Escrituras, há “muitas palavras que são também entendidas pelo povo comum”. De fato, quando as pessoas do povo (de todas as origens e condições) por um ato de fé (sob a mesma inspiração do Espírito Santo que deve permear toda intepretação) lêem as Escrituras, mesmo considerando as distâncias linguísticas e culturais, em parte supridas pela tradução, conseguem entender grande parte do que ali é dito com grande clareza. Na releitura bíblica latino-americana tem se comprovado largamente que a leitura popular pode contribuir para a hermenêutica bíblica de toda a Igreja com conhecimentos sobre o sentido das Escrituras; conhecimentos estes que só poderíam ser alcançados através da comparação entre a Bíblia e a Vida. Nestes tempos de missão no mundo globalizado do século XXI, o teólogo anglicano das Ilhas Vírgens, Ashton Jacinto Brooks, nos lembra que:

A Bíblia nos apresenta o desafio de romper com a dicotomía que cria dois mundos, na intepretaçào da nossa existência. Temos a tendência a crer que o manejo da exegése bíblica pertence a um grupo seleto de pessoas que se fecham em seminários e congressos e que vivem em instituições acadêmicas, reservándo-se para a massa do povo, as orações, as intercessões ao igual que outras tantas atividades litúrgicas[13].

A Bíblia é de toda a Igreja, dada a todo o povo, pois ela nasce de um povo peregrino, que pode e deve ser auxiliado na sua aproximação como admite o próprio Tyndale, ao dizer que não exitará em colocar qualquer exclarecimento que ajude tornar a versão “mais apta”. No entanto, o trabalho de especialistas, assim como Tyndale entendeu seu próprio trabalho, deve ser feito como função auxiliar, como ministério, para edificação de toda a Igreja como Corpo de Cristo. Ninguém substitui ninguém no labor da interpretação das Escrituras, não há superiores e inferiores, mas há um povo colocando todos seus dons para escuta mais clara e completa da vontade de Deus através da Bíblia.

Richard Hooker: fé, razão e tradição superando a “sola scriptura” e o legalismo bíblico

Richard Hooker se caracteriza por um certo hermentismo[14] no seu discurso. No entanto, se considerarmos o contexto do debate com ou contra o puritanismo, pode se enteder que este teólogo não quer destruir seus adversários, primeiro quer compreende-los, aceitando que a fé é antes e acima de tudo mais do que pode ser alcançado pelo entendimento. Assim, quando se afirma que as Escrituras contém tudo o necessário para a salvação, não se refere apenas a sua leitura racional, mas, antes a suas verdades reveladas pelo próprio Deus em Cristo. Acredito que até aí os puritanos birvariam junto com Hooker, sentindo que ele tinha finalmente percebido o sentido mais profundo a piedade cristã.

Hooker, no sentido da relação entre Antigo e Novo Testamentos, assim como na questão da revelação como encerrada nos escritos canônicos, estava refletindo um conscenso da sua época[15]. Também aqui não haveria tensão entre o princípio da sola scriptura – somente as Escrituras – e suas afirmativas. Aqui cabem duas hipóteses: ou ele realmente acreditava na revelação única e encerrada na Bíblia ou, podemos também suspeitar, queria também neste ponto construir um espaço de diálogo com os setores mais “legalistas”.

Lentamente, com grande habilidade teológica e política, Hooker conduz o leitor e leitora para o centro da sua argumentação, isto é, que o natural não é anulado pelo sobrenatural, que a fé não anula a razão. De fato ele demonstra que, mesmo partindo de bases semelhantes que as dos puritanos, há um inevitável diálogo entre a natureza humana e o próposito divino. O natural tem seu lugar como palco da ação divina e o sobrenatural sua importância como complemento orientador da salvação que leva para além dos limites da natureza. As Escrituras, neste contexto, são nada mais do que a forma de fixação natural desta orientação sobrenatural, escritas “em uma ocasião particular e com um propósito particular”, isto é, pela mediação da razão e da historicidade. Não há uma auto-revelação das Escrituras, mas a necessária intepretação que deve considerar, ao mesmo tempo, seu propósito eterno e sobrenatural e sua forma humana, histórica, natural e contextualizada.

DADOS BIOGRÁFICOS: Richard Hooker (1554-1600)

Richard Hooker nasceu em uma família humilde de Exeter, sendo o único filho de uma mãe viuva. Ele mostrou que tinha capacidades especiais, como uma “criança prodígio”. Como afirma Stephen Neill, “era só um garoto quando Elizabeth I subiu ao trono e não tinha conhecido nada da amargura das tempestades anteriores”[16]. As qualidades e potencialidades do jovem Richard fizeram com que o Bispo Jewel o apadrinhasse e permitisse que, aos treze anos, ingressasse em Oxford. Assim passou os próximos dezesseis anos estudando no Colégio Corpus Christi e desenvolvendo seus conhecimentos nas línguas clássicas e no hebraico, com um “tenaz desejo pela verdade”, aproveitando todas as possibilidades que eram oferecidas pela Universidade aos seus discípulos e “através deles para a Igreja Anglicana”[17]. A obra da qual extraímos o texto para este trabalho chama-se Leis da Política Eclesiástica (Ecclesiastical Polity), e foi publicado em 1593, quando Hooker tinha aproximadamente quarenta anos. Segundo Neill, a obra de Hooker revela entre outros atributos intelectuales “um maravilhoso conhecimento da Escritura”[18].

O contexto no qual Hooker interpreta as Escrituras é reage diretamente ao princípio puritano (reformado) da sola scriptura (isto é, somente as Escrituras). Hooker concentra seus estudos no valor da “lei” e sua autoridade. Na visão de dele a lei estava implícita na própria natureza divina[19]. No entanto, esta lei não era acessível apenas através das Escrituras. O recurso fundamental da revelação era mesmo a fé! Mas, o correto uso da razão e os pronunciamentos da Igreja também podiam levar ao conhecimento desta lei, ou da vontade de Deus para com a humanidade, o mundo e a Igreja[20]. Assim Hooker começa a delinear, na sua tensão dialética com o puritanismo inglês, o sentido da interpretação das Escrituras dentro do tripé: Bíblia, tradição e razão. Conforme resume Neill, “para Hooker, como para os puritanos cujo conceitos teve que refutar, a base de todas as coisas é a Palavra de Deus dada ao homem (...) conduz à mais assinalada característica anglicana, de defesa da razão, que determina e estabelece o que bom de fazer”[21].

Hooker: As Escrituras e o Caminho da Salvação

Desde que a vida de toda carne é excluída da salvação através do caminho natural, a sabedoria de Deus tem revelado o caminho místico e sobrenatural. Este caminho nos dirige para a felicidade eterna pelo curso que está fundado, não sobre o mérito humano, mas sobre a culpabilidade do pecado. Nosso caminho de salvação descança sobre a terna compaixão de Deus para conosco, que somos engolidos pela miséria. Esta é uma redenção da miséria pela preciosa morte e mérito de um poderoso Salvador. Foi ele que disse de si mesmo, “eu sou o caminho” (Jo 14:6). Nosso salvador é o caminho que nos leva da miséria à felicidade.

Deus mesmo preparou este caminho sobrenatural de salvação antes de todos os mundos. No Evangelho de São João, nosso Salvador aponta o caminho do dever sobrenatural que tem prescrito para nós. Ele o chamou o trabalho de Deus, - “Este é o trabalho de Deus, pelo qual vós credes naquele que os tem enviado” (Jo 6:29). Isto não significa que Deus não requer nada mais de nós que a mera crença, se vamos obter nossa mais alta felicidade, não podemos nós furtar da necessidade da esperança e do amor. Isso significa, contudo, que sem crença nada mais tem valor, e significa que a crença é o terreno (a base) da esperança e o amor.

O objeto principal da fé é a verdade eterna que tem descoberto os tesouros da sabedoria oculta em Cristo. O mais alto objeto da esperança é a bondade eterna que torna a morte viva através de Cristo. O objeto final do amor é a incompreensível beleza que brilha na fase de Cristo, o Filho do Deus vivo.

Na terra a origem primeira (the first beginning) destas virtudes é a fraca apreensão de coisas não vistas. No mundo vindouro, o fim dessas virtudes é a visão intuitiva de Deus. Na terra a segunda origem destas virtudes é a exitante escpectativa de coisas que estão longe e, neste tempo, só ouvimos sobre elas. No mundo vindouro, isto termina com o real e verdadeiro proveito (fruição) desta glória que nenhuma língua pode expressar. Na terra, a terceira origem é a débil inclinação de nosso coração dirigindo-se para cima em direção a ele a quem nós não somos capazes de nos aproximar. No mundo vindouro, o fim desta inclinação é uma infinita união com Deus. O mistério desta união é mais alto, que o mais alto que pode alcançar o pensamento humano.

Fé, esperança e amor não brotam do natural mas, do sobrenatural. Sem elas não pode haver salvação, e ainda elas nunca foram mencionadas excepto naquela lei com a que Deus mesmo as têm revelado desde o céu. Neste mundo não há nenhuma verdade certa sobre qualquer uma das três. A única certeza que temos sobre elas foi sobrenaturalmente recebida da boca do Deus eterno.

As leis sobre fé, esperança e amor são sobrenaturais. O caminho pelo qual elas foram entregues ao homem é sobrenatural, porque esse caminho é divino; as leis, em si mesmas, são sobrenaturais, porque não são leis sobre a natureza mas, apontamentos voluntários de Deus para suplementar as leis da natureza. Seu propósito é corrigir os defeitos da natureza. Assim, embora estes deveres sobrenaturais sejam nossas obrigações, eles não cancelam nossos deveres naturais e os tornam supérfluos. Ambos são, desta forma, necessários para nossa salvação eterna, embora o caminho natural necessite ser suplementado pelo caminho sobrenatural, e que o caminho sobrenatural presuponha o caminho natural.

Nos vemos que deve haver algum caminho do conhecimento das coisas já mencionadas como necessárias para a salvação. Muitas delas, contudo, não podem ser descobertas à luz da natureza, e assim, sem um conhecimento sobrenatural, todos estão excluídos da salvação. Assumir isso será muito cruel, e nós cremos que há algum conhecimento sobrenatural, e que Deus nos têm revelado o caminho da vida que é nossa salvação.

“Deus, que variadas vezes e de diversas maneiras falou em tempos passados” (Hb 1:1) para os filhos dos homens, deu a eles um conhecimento da salvação, Ele o fez, não somente através da Igreja pelo discurso, mas também pela escrita. Ele usou a escrita para fazer que sua revelação para este mundo fosse mais permanente e certa do que poderia ser de outra forma. Cada coisa registrada pela “pena” (caneta) sobre o papel é de maior permanência e garantia que as memórias apenas orais que não usam a “pena” mas a língua, e nenhum livro mas a audição do homem.

Cada livro da Escritura foi escrito em uma ocasião particular e com um propósito particular. O conteúdo de cada livro da Escritura é relevante para o propósito especial para o qual foi escrito. Por esta razão cada livro da Santa Escritura usa todos os tipos de verdades necessárias para apresentar o propósito que o livro revela. E que este é o caso, mesmo quando a verdade é natural, histórica, forasteira ou sobrenatural.

Nos temos dado suficientes razões para concluir que tudo o necessário para a salvação deve ser feito conhecido para nós, e assim Deus, tem, por esta razão, revelado sua vontade. De outra forma, os homens podiam não saber o que era necessário para sua salvação. O fato de Deus ter parado de falar para o mundo depois da publicação do Evangelho de Jesus Cristo, que foi entregue a nós por escrito é uma indicação óbvia de que o caminho da salvação é agora suficientemente revelado para nós, e que nós não necessitamos nenhuma outra instrução além daquela que Deus já nos tem dado.

O significado essencial de todo o Novo Testamento é resumido nas palavras de São João sobre o propósito do seu próprio Evangelho, “Estas coisas foram escritas, para que vós possais crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus; e que crendo vós possais ter vida em seu nome” (Jo 20:31). O significado essencial do Antigo Testamento é dar a nós aquilo que São Paulo escreveu em sua carta para Timóteo, “As Sagradas Escrituras...são capazes de fazer você sabio sobre a salvação” (2 Tm 3:15). O propósito geral tanto do Antigo quanto do Novo Testamento é o mesmo. A diferença entre eles pode ser encontrada no fato de que o Antigo Testamento não torna sábios nos intruíndo sobre a salvação que iria a vir através de Cristo o Salvador, quando o Novo Testamento nos faz sábios pela instrução de que Cristo o Salvador veio, e que este Jesus, que foi crucificado (...), e que ressuscitou da morte por Deus, é o Cristo.

Desta forma, quando São Paulo disse a Timóteo que o Antigo Testamento podia “fazer ele sábio sobre a salvação”, ele não queria dizer que o Antigo Testamento é suficiente, por si mesmo, para aqueles que viveram depois da publicação do Novo Testamento. Ele escreve para Timóteo com a presuposição de que Timóteo já conhecia a doutrina de Cristo, pelo que, logo antes das palavras que foram citadas, ele disse “continúa tu nas coisas que tens aprendido e que foste inteirado conhecendo de quem as aprendestes”(2 Tm 3:14). Assim São Paulo garante que o Antigo Testamento pode fazer Timóteo “sabio para a salvação”, acrescentando a ele a qualificaçào “através da fé que está em Cristo Jesus” (2 Tm 3:15).

Contudo, mesmo sendo completado pelo Novo Testamento, o Antigo Testamento não pode por si mesmo fazer por nós muito mais do que o apóstolo Paulo disse que faria. O valor do Antigo Testamento somente prénuncia o ensinamento do Novo Testamento, da redenção através de Cristo; mas é no Novo Testamento que se revela esta redenção. O recomendação de São Paulo sobre o Antigo Testamento presupõe a aceitação do Evangelho de Cristo como outorgador do sentido prénunciado no Antigo Testamento.

De forma semelhante, quando nós valorizamos a completa suficiencia de todo o corpo das Escrituras, nós também temos uma presuposição. Nós presupomos que a luz da natureza é uma condição necessária para o entendimento das Sagradas Escrituras, e assim mesmo, percebemos que é necessária uma luz mais divinal que a luz da natureza, mas não queremos dizer que a luz da natureza seja desnecessária.

Ali não há, portanto, nenhum defeito da Escritura e sua perfeição, e isto que faz com que ambas se aperfeiçõem e completem o entendimento natural. Não há dever necessário para a vida na Igreja de Deus que não tenha revelado pela luz do entendimento natural completado pela revelação da Santa Escritura. As Santas Escirituras suplementam nosso conhecimento natural, e não há nenhum bom trabalho requerido por Deus que não seja dado a nós, tanto pelo nosso entendimento natural quanto pelas Escrituras. Assim, ambos nos dão toda a instrução necessária para todas nossas obrigações, sejam elas naturais ou sobrenaturais, ou que sejam deveres para os homens simplesmente como homens, ou homens criados juntos em algum tipo de sociedade. A luz da natureza não é suficiente para nossa felicidade eterna, nem é a Escritura sozinha suficiente para isto. Ambas juntas, contudo, nos dão um completo conhecimento de tudo o que é necessário para isso, e nos não precisamos nenhum outro conhecimento que aquele suprido por elas trabalhando em conjunto.

Deus tem nos dado nossos sentidos para que possamos ver com eles as coisas que precisamos em nossa vida presente. Ele tem nos dado razão porque nossos sentidos não podem darnos a informação sobre muitas coisas que podemos conhecer sobre a presente vida e sobre a vida que virá. Finalmente, ele tem nos dado uma ajuda celestial através da revelação profética, e sito, tema bertos estes mistérios ocultos que a razão nunca terá a possibilidade de descobrir, ou mesmo tem conhecido como algo necessário para nosso eterno bem-estar. Este é o nosso dever de usar todos estes preciosos dons em honra e glória de Aquele que deu todos eles a nós. Nós devemos também buscar, através de todos os significados que tenhamos em nosso poder, saber qual é a vontade de Deu, o que reto em sua visão, o que ele considera como santo, perfeito e bom; e, então, nós devemos fazer tudo isso[22].

A razão como dom de Deus para o entendimento das Escrituras

Um importante avanço conseguido por Hooker, ao qual não devemos renunciar, é o entendimento teológico-filosófico da razão como dádiva divina e não como tentação diabólica. O princípio da sola scriptura afirmava, como ainda continua sendo sustentado por alguns ramos do cristianismo, que a Bíblia era um texto infalível, tida como “muito certa”, “muito fácil”, “muito aberta” e como sendo “seu próprio intérprete” (ipse sese certissima, facillima, apretissima, sui ipsus interpres). Dentro deste entendimento a razão era reduzida a uma escrava da doutrina ou do dogma, isto é, uma razão hierárquica imposta por pessoas que se atribuiam o poder de definir o que seria a “verdade” dentro da interpetação bíblica. A razão é colocada à serviço da Palavra de Deus, mas Hooker admite que ele revela Deus além da mera letra, permitindo atingir verdades não tão aparentes, nem tão imediatas para nossos sentidos. Através da razão Deus consegue falar novas coisas através das mesmas palavras.

John ss. Marshall, estudioso da obra de R. Hooker, resume assim a contribuição deste teólogo para hermenêutica bíblica no anglicanismo:

Hooker reconheceu que as meras Escrituras não são suficientes. Nos precisamos da autoridade da Igreja para nos inducir a considera-las favoravelmente. E precisamos da razão para nos provar que as Escrituras são uma verdadeira revelação. A razão nos ensina essas obrigações naturais que não são dadas pela revelação divina, e finalmente nos prové os métodos de pesquisa da exegese (...) Hooker acreditava que o uso simultâneo da razão na exegese e de uma filosovia natural e moral eram a base necessária para o entendimento humano. Com a interpretação da Bíblia à luz da filosofia moral, a ordem sobrenatural e seus deveres completam nosso conhecimento natural e nos vemos a relevância do plano de redenção de Deus e o significado da Encarnação por nós homens e por nossa salvação[23].

O uso da razão e, portanto, a defesa da exegese crítica, e não retórica como era feita pelos setores puritanos, não foi algo exclusivo do anglicanismo nem de Hooker. A consciência da necessidade de um estudo científicamente embasado e contextualizado das Escrituras era defendido por outros teólogos e biblistas como Matthias F. Illyricus (1520-1575) e Hugo Grotus (1583-1645) que estabeleceram as bases para o Método Histórico Crítico na modernidade[24]. Portanto, devemos considerar que neste ponto Hooker se apoiava em um movimento ecumênico não declarado que marcava o ingresso do pensamento científico moderno na teologia. Mas, a grande ousadia de Hooker foi afirmar que sozinhas as Escrituras não são suficientes para alcançar a felicidade eterna. As Escrituras precisam tanto da razão quanto a razão das Escrituras.

Outro aspecto a ser destacado em Hooker é seu método argumentativo. Parece-me que ainda, e especialmente em tempos de conflitos teológicos, temos muitos a aprender. Este método filosófico consiste em incluir os argumentos a serem superados dentro do próprio discurso, não apenas como demonstração de que ouvimos atentamente o que foi dito pela pessoas que discordamos, mas como reconhecimento do que há de revelador em todo discurso inspirado pela fé. Esta qualidade faz parte da boa política que não quer apenas derrotar ou desautorizar o discordante, mas contribuir para o aprofundamento dos seus próprios argumentos e a consideração de novas razões. Como observa Marshall, Hooker demonstra sua renúnica a qualquer forma de autoritarismo, seja na exegese, seja na contrução teológica:

Hooker não está somente livre do autoritarismo na exegese. Também está livre do autoritarismo eclesiástico (...) Como teólogo ele usou uma razoável liberdade na interpretação da Sagrada Escritura (...) Hooker não aceitou os métodos dos manuais, mesmo que fossem comumente usados em seus dias (...) Tanto Católicos Romanos quanto Protestantes Aristotélicos Alemães produziram muitos manuais (...) Hooker não concordou com seu uso, mas insistiu em seguir o método da Suma de Tomás, e produzir uma conceição orgânica de Deus, da humanidade, da Encarnação, do ministério e da Igreja[25]

Hooker nos mostra o caráter libertador da razão quando entendida como dom de Deus para o bem da humanidade, através das Escrituras, da Igreja e de todo o conhecimento humano. A razão é uma defesa contra o autoritarismo doutrinário é uma grande aliada do diálogo, da busca conjunta pela verdade eterna. A razão também é, em um sentido bem pós-modernista, a libertação da ditadura dos métodos rígidos, dos caminhos de mão única. Um belo desafio para nossos dias!.

Brooke F. Wescott: Escrituras entre o milagre e a ciência

O Bispo Brooke F. Wescott reflete bem os primeiros tempos da análise científica dos textos bíblicos. Os resultados da aplicação dos métodos históricos, arqueológicos, antropológicos e literários aos textos bíblicos trouxem grande comoção a setores mais “dogmatizados” do cristianismo, em termos gerais, e do anglicanismo. Com biblista e bispo da Igreja Wescott manifesta com um sentido, ao mesmo tempo exegético e pastoral, a posibilidade de crescimento e de amadurecimento que este novo entendimento das Escrituras traz para a Igreja. Depois de tudo os métodos científicos não mostravam nada mais que uma realidade que sempre esteve presente nas Escrituras, a saber, sua diversidade e até suas contradições. Por outro lado, estando conscientes destas questões ele nos mostra que é ainda mais evidente o milagre da revelação de Deus, só Deus pode através de experiência localizadas e limitadas aos seus contextos, nos mostrar o sentido maior da sua presença em todo tempo e lugar.

DADOS BIOGRÁFICOS: Brooke Foss Wescott (1825-1901)

Pouco sabemos sobre a infância do B.F.Westcott, que chegou a ser Bispo de Durham. Ele foi educado na Escola Eduardo VI em Birmingham, depois estudou no Trinity Colege em Cambridge e foi ordenado em 1851. Publicou uma série de trabalhos teológicos incluidos na primeira edição da sua História do Canon do Novo Testamento (History fo the New Testament Canon), em 1855. Em 1860 publicou uma Introdução ao Estudo dos Evangelhos (Introduction to the Study of the Gospels e a História da Bilbia Inglesa (History of the English Bible) em 1868.

Em 1870 foi eleito “Regius Professor of Divinity” em Cambridge, publicando em 1881, junto com Hort, a edição crítica do Novo Testamento grego. Depois fez três grandes comentários do Evangelho segundo João (1881), as epístolas de João (1883) e a epístola aos Hebreus (1889). Todos frutos de suas aulas em Cambridge. Ele foi também um encorajador de missionários, participando de sua formação especialmente na missão para Índia. Foi sagrado Bispo de Durham em 1890, participando da mediação de diversos conflitos sociais, inclusive de uma greve de mineiros de carvão em 1892. Nesse ano publicou “O Evangelho da Vida” (The Gospel of Life), seguido de diversos volumes de sermões, entre eles, “A encarnação e a vida cotidiana” (The Incarnation and Common Life), em 1893, e “Aspectos cristão da vida” (Christian Aspects fo Live), em 1897[26].

Para S. Neill, Westcott deve ser entendido no contexto de um grupo de teólogos de Cambridge, e “íntimos amigos”: Joseph Barber Lightfoot (1828-1889; que lhe antecedeu como bispo de Durham) e Fenton John Hort (1828 –1892; com que escreve a versão crítica do NT grego). Estes três amigos tinham a capacidade de, ao tempo que eram grandes eruditos, viver próximos as experiências populares. O tempo destes personagens, segundo descreve Neill, era “de graves incertezas (...) entre um obscurantismo que recusava formular-se qualquer pergunta e um racionalismo que apenas desejava admitir a possibilidade de nenhuma resposta (...) Estes homens escolheram e encontraram a via média”[27].

Brooke Foss Westcott: a Bíblia na Igreja

(Extraído de WESTCOTT, Brooke Foss. The Bible in the Church, a popular account of the collection and reception of the Holy Scriptures in the christian churches. London: MacMillan, 1889; p.1-13).

Introdução

“Existem uma diversidade de trabalhos, mas o mesmo Deus que faz tudo em todos” 1 Cor 12:6.

Cristiandade histórica e conectada a uma longa história

Uma das principais características da religião cristã reside no fato de estar baseada na história. Suas grandes doutrinas são a simples interpretação do necessário resultado dos fatos. O Evangelho, de acordo com o instituído julgamento das idades, é enfaticamente uma narrativa de passagens da vida de Cristo. Esta história, novamente, não existe de forma isolada, mas unida a uma história prévia que alcança a primitiva aliança de Deus e o homem. Se o messias que veio foi, em certo sentido, súbito e inesperado, em outro foi largamente anunciado por outras vozes das quais João Batista foi a mais próxima. Se sua doutrina foi estranha, somente foi estranha para aqueles que concordavam com um significado superficial das promessas divinas. Para aqueles que olhavam a vida de nosso abençoado Senhor profundamente, foi a consumação de longos perídos de luta e repouso, de divina instrução e divino silêncio, o quel pode também ser traçado em claras linhas desde a primeira separação do povo escolhido; e também, por outro lado, seu ensinamento contendo o cumprimento de tudo que estava internalizado na alma do legislador, o salmista ou o profeta.

Mesmo que tenha sido redigido fora do tempo para servir à fundação da revelação cristã; e suas próprias lições não foram registradas em uma única direção, mas em muitas, elas podem abraçar todas as idades e todas as mentes. Ele foi precedido por uma preparação mais completa e variada: ela foi colocada em um registro que reflete os lados mais opostos de sua doutrina. É isso que a Bíblia toda certamente pede como uma oração e um tipo de inclusividade e unidade da fé cristã, um livro cheio de significado pela variedade dos tempos e circunstâncias nos quais suas diversas partes tiveram origem, assim como pela inspirada presença da mesma vida espiritual.

A Bíblia essencialmente histórica

Para nós o cristianismo é histórico, assim também como cada parte da Bíblia é histórica. Não é só uma boa parte de ambos os testamentos que professa a narrativa dos eventos, mas mesmo com a característica especial dos Salmos, profecias e epístolas todas refletem diferentemente as circunstâncias externas nas quais foram compostas. Outros livros sagrados são, em sua maior parte, proeminentemente rituais ou confissionais, produto de um breve períod, ou totalmente particulares de uma região ou fato; mas a Bíblia tem, em sua origem, um lento crescimento no tempo, intimamente conectado com o longo desenvolvimento da vida nacional, dando, na sua superfície, a impressão de sucessivas revelações, estendendo-se de um tempo a outro tempo pelo acréscimo de novos elementos, aceitos em sua forma presente não por um único ato de uma vez por todas, mas gradualmente, e, tanto quanto pode ser conhecido pelos trechos deixados pelos registros existentes, de acordo com as leis naturais da crítica, colocados dentro de limítes determinados

Características históricas gerais da Bíblia

O lento processo pelo qual o conteúdo do sagrado volumem foi determinado leva a inferir que: as diferenças que dão marcas particulares a muitos livros são legíveis neles mesmos. Não é necessária nenhuma investigação detalhada para mostrar que as partes constituíntes da Bíblia, quando olhadas separadamente, tem um distinto e peculiar significado, e esses longos períodos devem (pela ordem natural das coisas) haver interferido entre os livros particulare, e que outros, muito mais contemporâneos na sua origem, são muito mais dificilmente diferenciáveis pelas características pessoas dos seus autores. Estes limites de demarcação aparentemente existem entre a Lei e os Profetas, entre os livros do Reis e Crônicas, entre os profetas anteriores e posteriores, ou, para tomar exemplos diferentes, entre as epístolas de São Tiago, São Paulo e São João, e entre os primeiros três Evangelhos e o quarto. Nenhum, de fato, estaria inclinado a questionar seriamente a existência de esta diversidade de ensinamentos, ou mesmo a negar que ele encontra partes especiais da Bíblia melhor adaptadas a seus próprios interesses ou aos interesses de algum tipo particular de sociedade; assim praticamente todos erram mais ou menos, ao ver tudo como se estivesse falando diretamente e na sua forma original, para si mesmos. Se as faltas grosseiras que temos defendidos em tempos rudes pela letra da Santa Escritura esta agora contida pelas influencias morais da vida, ainda temos que estar aptos para esquecer que em todos os tempos Deus falou aos homens como eles eram então e atrvés de homens; e que consequentemente toda verdadeira interpretação deste registro deve virar-se para a relação entre o ato das pessoas engajadas nele, do mundo de quem fala e de quem ouve, do julgamento do espírito de quem testemunha. A unidade da Bíblia não é uniformidade, e sua variedade não é discrepância; mas usualmente para desenhar uma imagem da Escritura, o todo é como uma “criatura viva”, feita para vivas criaturas. A parte tem uma vida distinta assim como a totalidade; os membros são individualmente completos assim como o é o corpo inteiro. Cada frase progressiva no desenvolvimento da revelação tem sido preservada também, na sua forma madura; e assim em diferentes pontos nos podemos traçar a origem e operação de diferentes elementos, os quais, através de uma larga contribuição até o resultdo final, deveriam de ser todos deixados de lado se este resultado sozinho tivesse permanecido (...).

Os nomes da Bíblia nos tempos do judaísmo

Os nomes reais da Bíblia carregam um forte testemunho do sentido instrutivo dado pelos homens nas etapas da sua elaboração e unidade. O próprio título hebraico é a simples enumeração da sua tríplice divisão, “A Lei, Os Profetas, e os [Santos] Escritos; e seus titútlo é reconhecido no Novo Testamento, também em sua forma completa, como “A Lei, Os Profetas e Os Salmos” (Lucas 24:44), e abreviadamente “A Lei e os Profetas” (Mateus 11:13; Atos 28:23). Mais geralmente, contudo, o Antigo Testamento é mencionado simplesmente como “As Escrituras” (Mateus 21:42; marcos 14:49; Lucas 24:32; João 5:39; Atos 18:24; Romanos 15:4; etc.), da mesma forma o termo singular correspondente – “A Escritura” – é comumente usado para uma passagem em particular e não como hoje tanto para a parte quanto para o todo (Lucas 4:21; João 20:9; Tiago 2:8; etc.). No começo da era cristã os judeus não possuiam nenhum nome em singular para seus livros sagrados; isso não deve parecer estranho, já que nesse tempo eles não podiam aceder a elas de forma completa. Ainda, é digno de nota, que o termo “A Lei” era estendido popularmente para todas as outras divisões da Bíblia, para os Salmos (João 10:34; 12:34: 15:25), e os Profetas (1 Cor 14:21), pelo qual era necessariamente vista como incluindo nela mesma o desenvolvimento completo do judaísmo.

Nos tempos do Cristianismo

O estabelecimento da cristandade deu, ao mesmo tempo, uma unidade distinta à forma original, e por isso São Paulo pode falar das Escrituras Judaicas, pelo nome que foi adotado sempre desde então, como o “Antigo Testamento” ou “Aliança” (2 Cor 3:14), adaptando e extendo a frase anterior para a Lei como “O Livro da Aliança” (2 Reis 23:2). No fechamento do século segundo os termos “Antigo” e “Novo Testamento” eram já de uso comum, apesar do esforço vão feito por estudiosos, que nesse momento e depois, pra substituir Testamento por Instrumento (ou Registro). Em tais casos o hábito popular prevaleceu; e torna-se motivo de alegria o fato de que o título foi preservado por representantes dos livros sagrados em conexão com seu Doador último, tanto quanto aqueles que somente is vêem como documentos oficiais ou autoritativos.

O primeiro título coletivo simples de toda a Bíblia parecer ser aquele encontrodao em Jerônimo, no 4o século, “A Divina Biblioteca” (Bibliotheca Divina), que depois passou através do uso comum dos escritores latinos, e depois dentro do nosso próprio uso do linguagar Anglo-Saxon. Ao mesmo tempo os escritores gregos passaram a usar o termo “Os Livros” (Bíblia, pl.) para a Bíblia. No decorrer do tempo este nome, como muitos outros de origem grego, passou para o vocabulário da Igreja Ocidental; e no 13o século, por um feliz solecismo, o plural neutro passou a ser visto como um feminino singular, e “Os Livros” passaram pelo consentimento comum a ser “O Livro” (Bíblia, sing.) na forma da palavra que passou para as linguas da Europa moderna.

O valor especial dos diferentes nomes

“As Escrituras”, “Os Livros”, “A Biblioteca”, “O Livro”, cada frase está grávida de sentido, e seria desejável que nenhum fique em desuso, ou sejamos privados do fresco vigor dos seus sentidos originais. De todos, quiça, a Biblioteca, é o termo que parece ser irrevogávelmente perdido, é o mais expressivo e inclui a idéia do “Livro” e “Os Livros” com mais agraciada simplicidade. Mas a palavra negada pelo uso popular, ainda vive para o estudante, tanto quanto nos vemos a Bíblia como a divina Biblioteca, tesouro dos registros divinos, de coisas antigas e novas – o trabalho de muitos autores, os produtos de muitas épocas – pelo que devemos nos proteger dos muitos perigos que podem aparecer para quem faz um estudo ingênuo da sua história e conteúdos, e nos preparar para sentir a grandeza plena e infinita de uma mensagem do amor que se apresenta de mil maneiras (...)

A consequente dificuldade de interpretação

Uma das principais dificuldades de interpretação que surge desta complexa manofatura da Bíblia reside na interpretação prática dos seus conteúdos, e a razão desta questão não aparece imediatamente diante de nós, ela não pode ser passado pelo todo sem notar, por ela vem a verdadeira constituição do Livro. É óbvio que os registros do Divino ensinamento se deve muito mais do que a forma como foi apresentado à sociedade para qual foi endereçado e da qual estamos muito separados, e aos homens, que, sendo todos mensageiros e profetas, foram também companheiros de aqueles a quem eles o endereçavam; sendo que a verdade de suas lições perenes não podem ser obtidas por uma lei uniforme e permanente de interpretação literal. Assim, será necessário mesmo como um primeiro passo em direção ao entendimento dentro destas variadas lições, uma concepção diferente do significado das palavras onde elas foram elaboradas e do caráter do ação pela qual foram escritas. Nenhuma parte da Bíblia, sendo verdade, permanecerá antiquada, porque, mesmo sendo tudo isso antigo, ainda contém o espírito com o qual primeiramente foi vivenciado, ainda que, sua forma de vida e de pensamento não nos sejam absolutamente familiares. Nosso uso habitual da linguagem vem do passado sob novas condições, aumentando as dificuldades de entendimento, que é o que realmente importa. Uma análise rigorosa e constante deve servir para que possamos lembrar que as asociações com as quais hoje confrontamos as palavras da Santa Escritura não fazem parte do seu sentido original.

O aparente conflito entre as sucessivas apresentações

A dificuldade com a qual - a interpretação bíblica - depara-se freqüentemente é claramente iluminada quando vemos as diferentes séries de revelações (para assim dizer) contidas na Bíblia. Esta várias faces da revelação progressiva respondem em bom grau aos períodos do progresso social nelas referidos, mas que eles apresentam dentro de formas mais arrojadas e inclusivas. Se, por exemplo, comparasemos as revelações que Deus se agradou em fazer durante o período patriarcal com aqueles que acompanharam a doação da Lei, sentimos imediatamente que elas não somente foram endereçadas a homens em diferentes situações, mas elas mesmas são também diferentes no seu escopo e caráter. A diferença é ainda maior se comparamos a letra da Lei como os escritos dos profetas, e os profetas com os apóstolos. Instintivamente fazemos alguma adaptação e acomodação das partes constrastantes. Nós descartamos as dificuldades colocando fora aquelas partes dos dados de onde elas provem. Mas nehuma solução encontramos para os muitos problemas que surgem da comparação entre judaísmo e cristiandade, e os vários lados do judaísmo e cristiandade em suas mútuas relações com o outro nunca serão satisfatórios, ou mesmo tenderão a colocar-se em harmonia com a Escritura em seus verdadeiros aspectos, que não estão baseados nesse princípio na proporção em que acabamos de indicar. O ensino das Escrituras, como foram apresentadas aos homens, deverá ser relativo. Descobrir a relação de uma dispensação ou mensagem para aqueles a que primeiramente foi designada, é a primeira condição para acertar o que é isso que atribuimos a nós e ao plano geral da Divina Providencia.

A Bíblia fragmentária

Existe ainda outra questão inherente à formação da Bíblia, a qual não pode ser omitica em qualquer estimativa de suas características. Ela é fragmentária. Com a exceção parcial do Pentateuco, ela não apresenta em nenhum lutar seu semblante completo. Onde podemos traçar a história dos escritos que a compõem com maior precisão, ela não parece como o que poderiam designar como parte de um código de doutrina e disciplina. Humanamente falando, eles surge de circunstâncias passageiras e onde intentam se encontrar vontades ocasionais. Estes anais, profecias e cartas, que têm (aparentemente) uma origem casual, podem se combinar dentro de uma todo maravilhosamente completo e simétrico em seu ensinamento espiritual que é, assim mesmo, uma clara sugestão da presença de um poder controlador tanto na sua composição quanto na sua preservação. Mas, o grande esquema pelo qual são fixadas não é completo em todas suas partes. Os variados livros necessariamente apresentam muitas lacunas em seus registros que não podemos completar. O divino fluxo se escvai pelo tempo, embora ele logo reapareça com força não menor. Assim como, tão logo como toda história é examinada criticamente, é evidente que grnade parte permanece no escuro e na perplexidade. Ainda, o mesmo senso crítico que traz as dificuldades à luz, fixa um límite prático para elas. Isso é suficiente se queremos ver onde nossa ignorância é uma resposta suficiente para fazer objeções, sem interpolar combinações imaginárias de eventeos dentro da narrativa da Bíblia e colocar em risco suas verdades dentro de nossa própria ingeniudade.

Os textos pertencem principalmente a épocas críticas

A fragmentaridade das Escrituras, quando vista em sua aparência exterior e aspectos puramente históricos, e ainda mais marcada pelas características gerais das épocas nas quais elas foram compostas. Principalmente elas pertencem a períodos de conflito e transição. Elas são registros do Divino ensinamento pelo qual o progresso religioso do povo de Deus avançou de uma etapa de desenvolvimento para outra. Ela não são (com raras exceções) produtos de tempos de crescimento e pensamento silenciosos, mas vozes proféticas que prepararam a nação para novas faces de vida. O Êxodo, a primeira conquista de Canaã, o estabelecimento do Reino, a queda dos reinos divididos, o cativeiro e o retorno, levantam distintas impressões nos variados grupos de livros que pertencem a eles; e não é sem uma estranha significação que os Divinos registros se fecham quando Israel foi primeiramente levado a ter contato com Grécia. Até o momento, uma progresso comparativamente pequeno tem sido feito no estudo do Antigo Testamento à luz da sua história específica (...) Parece mais certo que a Bíblia representa o progresso pelo antagonismo, o conflito e a reconciliação de visões parciais da verdade, um todo que se completa porque inclui cada um dos elementos separados em uma forma distinta e proporcional.

Vantagens correpondentes

Na mesma proporção que admitimos mais plenamente as dificuldades momentâneas que estão envolvidas na verdade apreciação e interpretação da Sagrada Escritura, ainda é evidente que estas dificuldades são amplamente compensadas por vantagens correspondentes. Se os aspecto popular da Bíblia – como um livro, escrito em um dialeto, formado em um molde, impresso com um tipo moral e intelectual, inteligível por uma regra, não menos inspirado por um Espírito – coloca fora de circulação muitas questões de perplexidade, ela negligencia igualmente muitas das mais preciosas lições com as que as Escrituras se revelam em todas as épocas. Não é somente por conhecer a variedade de distinção das partes que compõem a Bíblia que podemos ganhar uma adequado sentido da sua real unidade, da sua completude inherente, de seu testemunho interno da sua própria autoridade Divina.

As nobres características externas da Bíblia são sua unidade distinguida da mera uniformidade. A uniformidade é a consquencia natural de um design limitado: unidade é a expressão aparente de um grande princípio incorporado por muitos caminhos. Um que vem de fora e outro que vem de dentro: o primeiro é o signo do constrangimento, o outro da liberdade: o primeiro responde, em sua forma mais elevada, à organização, o outro ao crescimento. Ao retirar o franco reconhecimento do elemento humano na Bíblia, ampliado pelo acrêscimo da experiência, que faz parte da verdadeira essência de toda Divina palavra, e as necessárias condições nas quais esta unidade descança, eliminamos todos de uma só vez. Negando o ensinamento antitético da Leis e os Profetas, de São Paulo e São Tiago, restará lá nada mais do que a verdade total na qual estas aparentes contradições são resolvidas. Um Evangelista, ou os primeiros três Evangelistas sem São João, poderiam oferecer comparativamente menos dificuldades, mas qualquer pessoa pode sentir que a combinação é o terreno de uma plena harmonia que poderi ser construída a partir de muitas narrativas uniformes.

A integridade do treinamento moral que ela contém

A diversidade das Escrituras torna por si mesma essencialmente manifesta a integridade do treinamento moral que elas carregam. Ela é, como nos podemos ver, uma de marcas distintivas de que ela pertence a períodos separados, a faces constrantantes da vida, a várias formas de cultura, a distintos hábitos de pensamento, e as peculiaridades que ela reflete sempre se repetem na história. Nenhuma tentação é mais sutil ou mais potente que aquele nos faz julgar todas as coisas por um critério. Praticamente estamos inclinados a medir outros por nós mesmos, outras épocas por nossa própria época, outras formas de civilização por aquela na qual nos vivemos, como a verdde e medida final de tudo. Contra este erro, o qual é suficiente para quase obscurecer o mundo inteiro, a Bíblia contém uma segura salvaguarda. Nela nos vemos lado a lado como Deus busca uma lugar um lugar de adoração entre as nações e familias em cada época do avanço social e reconhece adoradores cheios de fé mesmo quando eles estão escondidos dos olhos dos profetas. As absorção dos cuidados da vida diária, o imperioso clamor daquels que estão imediatamente ao nosso redor, tentando ganhar nossa simpatia, mas a Bíblia nos mostra, em um tolerante registro, cada condição e cada poder humano abençoado pelo Espírito Divino. Ela nos leva fora do círculo das influências diárias e nos apresenta a profetas, reis e profundos pensadores e pregadores da retidão, cada um trabalhando em sua própria esfera variadamente e, ainda, por um poder e por uma finalidade. Pode ser objetado que devotos estudiosos da Bíblia tenham frequentemente se tornado fanáticos. Mas a resposta é fácil. Eles se tornaram fanáticos porque eram estudiosos não de toda a Bíblia mas de alguns fragmentos dela pelos quais tudo o resto foi sacraficado. O ensinamento de apenas uma parte, se tomada sem nenhum cuidado com a posição relativa em conexão com outras épocas e outros livros, pode levar ao estreitamento do pensamento, mas o ensinamento do todo reconhece e emnobrece toda a execelência humana.

O legado de Westcott para a leitura Escrituras no contexto pós-moderno

Para compreender a magnitude da contribuição do Bispo Westcott é necessário coloca-lo no contexto histórico da segunda metade do século XIX, e dentro de um anglicanismo que recentemente tinha passado por uma crise de unidade motivada pela leitura crítica das Escrituras publicada pelo Bispo de Natal (África do Sul) John William Colenso (1861).

Colenso publicou primeiramente o Comentário da Epístola aos Romanos (Commentary on the Epistle to the Romans) onde, segundo Reginald Fuller, “atacava a doutrina da punição eterna e quetionava a doutrina tradicional dos sacramentos”. Mas, continua explicando o autor, a verdadeira ofensa aconteceu quando aplicou a crítica história propriamente dita na primeira parte do trabalho intitulado O Pentateuco e o Livro de Josué examinados criticamente (The Pentateuc and the Book of Joshua Criticaly Examined). Colenso era, pela sua formação acadêmica, um matemático e por isso percebia “dificuldades logísticas no livro do Êxodo” entre outras observações[28], questionando assim a correspondência histórica dos mitos originários do judaísmo e do cristianismo. Finalmente sua excomunhão pelo Bispo de Cape Town levou à organização da primeiras Conferência de Lambeth em 1867.

Neste contexto se destaca a chamada Escola de Cambridge (The Cambridge School) circulando, como afirma Fuller, entre os ortodoxos conservadores e os críticos. Destacam-se aqui Brooke Foss Westcott, John Barber Lightfoot (1828-1889) e Fenton Anthony Hort (1828-1892). Segundo Fuller eles foram a resposta anglicana à escola crítica de Tubingen, cuja principal expressão foi Ferdinand Christian Baur (1792-1860). Baur encontrou nas cartas de Paulo o conflito com partidos judaizantes aplicando o processo dialético hegeliano de “tesis, antítese e síntese”. O primeiro a contrariar às afirmativas de Baur foi Lightfoot questionando a idéia que aquele autor defendia sobre o surgimento tardio do cristianismo depois do primeiro século a partir da leitura crítica dos documentos dos Pais Apostólicos (Clemente e Ignácio). Foi a partir de 1860 que os três estudiosos de Cambridge se dedicaram a escrever uma série de comentários do Novo Testamento; tocando para Westcott o Quarto Evangelho. Hort voltou-se mais para a crítica textual e Westcoot mais para a hermenêutica, baseada nas descobertas de Hort[29]. Lendo o texto de Westcoott fica clara a preocupação do autor em traduzir em termos hermenêuticos e em orientações de vida espiritual a riqueza oferecida pela leitura crítica da Bíblia.

Evidentemente a leitura crítica da Bíblia recebida, em um primeiro momento, com tanto receio pelos setores mais conservadores, não devia ser temida e sim aproveitada. Ela chegava para mostrar erros históricos e irracionalidades desnecessárias na interpretação das Escrituras, ao tempo que, trazia novos dados e descobertas que permitiam o desenvolvimento de uma espiritualidade mais madura, consistente, dialogal e tolerante.

Nos tempos pós-modernos surgem ainda novas formas de interpretação, novas linguagens, novos meios de comunicar a revelação bíblica, novos desafios ecológicos, políticos, sociais, culturais e religiosos. No meio disso a Comunhão Anglicana encontram-se em tensão novamente entre as pessoas que auto-denominam “ortodoxos” e aquele que se identificam como “liberais”. Em uma recente publicação onde se discute a questão da inclusão de pessoas homossexuais (Ohter voices, outher wrolds, the Global Church speaks out on homosexuality), este assunto que tem sido pivô de recentes tensões na Comunhão Anglicana, envolvendo, entre outras, questões relativas à exegese e hermenêutica bíblicas, mostra como o entendimento representado por Westcott e a Escola de Cambridge voltam a ser atuais e interessantes. Pedro Triana afirma:

Hoje temos dado um grande valor no processo de interpretação à informação oferecida por outras ciências, como arqueologia, sociologia, história da literatura, economia, psicologia, e ciências empíricas em geral. Os escritores bíblicos viveram em um mundo completamente diferente do nosso. Com diferentes culturas éticas e morais e concepções distintas das nossas[30].

A nova “ortodoxia” caracteriza-se por uma aproximação que o próprio Triana identifica como “aproximação literalista[31]. Em outro artigo David Russell, se referindo a leitura da Bíblia no Anglicanismo Sul-Africano, entende que a interpretação anglicana deve considerar simultaneamente “aqueles ensinamentos da Escritura que são para ‘o seu tempo’ e aqueles que são ‘para todos os tempos’ (...) a interpretação autoritativa da Bíblia é feita corporativamente, no Corpo (...) Não podemos ter a segurança de um caminho infalível para uma interpretação autoritativa da Escritura[32]. Finalmente, junto minha voz a este novo coro que defende a aproximação científica às Escrituras, não como ameça à espiritualidade ou aos valores éticos e morais da Bíblia ou da Tradição da Igreja de Cristo e do Anglicanismo, mas como uma grande oportunidade de amadurecimento na fé, no encontro sincero e aberto com as verdades de fé e vida que a história nos apresenta e pelas quais somos constantemente desafiadas e dasafiados:

É possível se referir a qualquer questão da Bíblia com a suposição de que as palavras fixadas nos podem ser extendidas e entendidas imediatamente, sem uma mediaçào socio-histórica e teológica, para outras situaçòes separadas por mudanças históricas, culturais e também religiosas?

A forma pastoral como Westcott conduz este tipo de questão no contexto dos primeiros conflitos causados pelo uso do Método Histórico Crítico no estudo e interpretação das Escrituras, e suas descobertas iniciais na ligação com a vida pastoral e a espiritualidade não apenas servem de inspiração, mas também de incentivo para que continuemos a tarefa de amadurecimento e inclusão a partir do maravilhoso legado fixado e consagrado nas Escrituras.


[1] Rowan WILLIAM. Identidades Anglicanas, p.127.

[2] Idem, p.142-143.

[3] John Henry BLUNT. The Reformation of the Church of England, p.503.

[4] Idem, p. 503-504.

[5] John Henry BLUNT. The Reformation of the Church of England, p.506, nota 6.

[6] Sebastião Gameleira SOARES. Reinventar a vida; missão de Deus, p.11-12 (grifos do autor).

[7] RUPP, Gordon. Six makers of English religion (1500-1700). New York: Harper, 1974 (p.16-17).

[8] Idem, p.23.

[9] FRYE, Roland Muschat. The Bible in English. In: The Bible in its Literary Milieu (John Maier and Viincent Tollers, eds.).Grand Rapids: William B. Eermans Publishing Company, 1979 (p.257).

[10] RUPP, Gordon. Op. Cit., p. 28-29.

[11] Idem, p. 26.

[12] Luther A. WEIGLE. The English New Testament; from Tyndale to the Revised Standard Version. New York: Abingdon-Cokesbury Press, 1929; p.60-61

[13] Ashton J. BROOKS. Estado actual de la Iglesia, p.93.

[14] G. FILORAMO. Hermetismo, In. Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs, p.669-670. O hermetismo desde suas origens egípcias e helenísticas foi uma literatura (corpus hermeticum) relacionados a uma “revelação” maior e sobrenatural. Nestes escritos há uma idéia semelhante a de Hooker na relação entre o visível e invisível, ou o natural e sobrenatural, como resume este autor: “somente graças a contemplação do mundo, deus vivo, que se pode ao Deus invisível (...) comportamente em que a pietas, a fé, est[a acima da inteligência, tornando-se seu guia espiritual”.

[15] John S. MARSHAL. Hooker and the Anglican Tradition, p.16. Este autor expressa que o entendimento puritanto baseava-se no “método retórico” (rethorical method) a partir do qual “eles concebiam que habia uma doutrina explícita da Santa Escritura diretamente anunciada pelo mesmo Deus” e que “ao fazer isto, eles habitualmente renegavam a mudança entre o Antigo e Novo Testamento” fazendo “do Novo Testamento um mero suplemento do Antigo Tesamento (...) o método era completamente a-histórico”.

[16] NEILL, Stephen. El anglicanismo. Viladecavals: M.C.E Horeb/Iglesia Reformada Episcopal, 1986 (p.111).

[17] HIGHAM, Florence. Catholic and Reformed, a study of the Anglican Church (1559-1662). London: SPCK, 1962 (p.25).

[18] NEILL, Stephen. Op. Cit., p. 112.

[19] HIGHAM, Florence, Op. Cit., p. 27 (Hooker regarded lae as being intrinsic to the nature of God).

[20] Id. Ibid.

[21] NEILL, Stephen. Op. Cit., p.113.

[22] John S. MARSHALL. Hooker’s polity in modern english. Tennessee: Unversity Press at the University of the South, 1950; Chapter VIII, p.45-50.

[23] Idem. Hooker and the Anglican Tradition, p.52-53.

[24] Jean STEINMANN. A crítica em face à Bíblia,

[25] John S. MARSHALL. Hooker and the Anglican Tradition, p.64,69-70.

[26] CROSS, F.L. (ed). The Oxford Dictionary of the Christian Church. London: Oxford University, 1958 (p. 1448).

[27] NEILL, Stephen. Op. Cit., p.253-254.

[28] Reginald FULLER. Historical criticism and the Bible, p. 148-149.

[29] Idem, p.150-154.

[30] Pedro TRIANA. Do not judge...only comprehend, p. 210.

[31] Idem Ibid.

[32] David RUSSELL. Putting right a great wrong: a South African perspective, p.187.