24 fevereiro 2008

3º Domingo da Quaresma

A preparação para a Conferência de Lambeth de 2008 propõe o Evangelho de São João como texto básico para os estudos bíblicos dos bispos. O texto de São João tem mesmo beleza e intensa inspiração. O saudoso Arcebispo Michael Ramsey escreveu belíssimas páginas sobre o texto joanino. Neste blog, nas próximas semanas, retomaremos algumas delas como inspiração para nossa vida de piedade no tempo da Quaresma.


Lendo São João

“Como poderíamos melhor entender nosso esforço de leitura? O Evangelho de São João nos alcança um quadro da vida e do ensino de Jesus através de um discípulo que ponderou seu sentido e que chegou a compreender sua mensagem para a família humana. Este livro nos mostra Jesus como aquele que experimentou, conheceu e amou há tantos séculos. Mas em nossas leituras não estaremos somente olhando para trás. Estaremos sempre de novo pensando sobre como este mesmo Jesus vive hoje... e nos fala da mesma forma como falou a Nataniel, Nicodemos e à mulher de Samaria. Lemos sobre Jesus da mesma forma como eles o viram e ouviram, séculos atrás. Sabemos que este mesmo Jesus está presente conosco, falando diretamente a nós através dos atos e palavras dos quais lemos.
Devemos rezar: Senhor Jesus, na medida em que lemos o Evangelho de teu discípulo, mostra-nos o que devemos ouvir, receber e fazer. Faz deste Evangelho uma palavra viva para nós todos.”

Gateway to God, Daily Readings with Michael Ramsey

Darton, Longman and Todd, Londres - 1988
Editado por Lorna Kendall


Glória
“As palavras em hebraico e grego traduzidas por – glória – são freqüentemente usadas pelos escritores do Antigo e do Novo Testamento para falar do caráter revelado de Deus e também da resposta de seu povo na adoração e ação. Nenhuma outra palavra é mesmo mais sugestiva sobre o alcance e o caráter da espiritualidade cristã que as palavras glória e glorificar. A palavra hebraica kabod provêm da raiz – peso – e se aplica ao poder ou à riqueza de alguém. Aplicada a Deus, fala de seu poder e caráter, e não menos de sua majestade, transcendência e soberania. Ao lado do sentido de – peso – a idéia de – luz - é também ligada à palavra... e nos fala do brilho de Deus em si mesmo e em sua manifestação ao mundo. A palavra tem também um uso distintivo para a presença divina na nuvem vista pelos israelitas, no tabernáculo, no deserto. É significativo que a palavra usada por Deus mesmo em seus aspectos transcendentais é também usada como sinal particular de sua presença dentre o povo. É parte do tema da – glória – que a glória de Deus evoque a resposta humana tanto nos atos de adoração e louvor quanto no viver de acordo com o propósito de Deus. Nestas duas formas, o povo de Deus é chamado a – glorifica-lo – ou dar glória a Ele...
A fé cristã afirma que o ser humano existe para glorificar a Deus tendo a glória dos céus como alvo. Esta resposta inclui tanto a adoração, com seu temor, dependência e participação... quanto nós, mulheres e homens, nos aproximamos para dela participar e ser por ela glorificados. A participação, no entanto, jamais ofusca a linha de distinção entre o adorador e o Adorado, o redimido e o Redentor, a criatura e o Criador.

Arc. Michael Ramsey,
editado por Gordon S. Wakefield,
A Dictionary of Christian Spirituality, SCM Press, 1986

17 fevereiro 2008

2º. Domingo da Quaresma

Leituras

Gênesis 12.1-8
Salmo 33.12-22
Carta de São Paulo aos Romanos 4.1-5(6-12)13-17
Evangelho de São João 3.1-17

A transformação exige metanóia
SS. Bartolomeu I, Patriarca Ecumênico*

Transformação como cura para o coração
A Filocalia, uma antologia clássica de textos cristãos sobre oração, destaca o paradoxo impressionante de que a transformação seja conquistada por meio do silêncio: "Quando descobrirmos o silêncio em nossos corações, discerniremos Deus no mundo todo!" Em outras palavras, a transformação começa com a consciência de que Deus está no centro de toda a vida. "Fica em silêncio, e conhece a Deus." (Salmos 44,1). Por meio do silêncio, damo-nos conta de que a graça de Deus está muito mais próxima de nós; na verdade, ela faz mais para definir quem somos do que nós mesmos! A transformação do coração é a profunda consciência de que "o reino de Deus está dentro de vós" (Lucas, 17:21). A transformação interna, contudo, exige mudanças radicais. Na terminologia religiosa, ela exige metanóia - uma mudança de atitude e pressupostos. Não podemos ser transformados a menos que tenhamos antes sido limpos do que quer que se coloque contra a transformação, e tenhamos entendido o que desfigura o coração humano. Esse processo de auto-descoberta resulta apenas da graça de Deus e acaba levando a um respeito verdadeiro pela natureza humana, com todos os seus defeitos, tanto em nós mesmos quanto nos outros. Ele abre caminho para o respeito por todos os seres humanos, independentemente de diferenças, dentro da sociedade e da comunidade global. Através da transformação interna, essas diferenças são bem recebidas, honradas e assumidas como peças únicas de um quebra-cabeça sagrado; elas fazem parte do mistério mais profundo da criação maravilhosa de Deus.

A transformação como cura da comunidade
A transformação do coração surge na transformação da comunidade. A transformação é uma visão de conexão e compaixão. Que lástima que nós, cristãos, muitas vezes dissociemos espiritualidade de comunidade.
Quando nossos corações são transformados pela graça divina, vemos o mundo de forma diferente e somos levados a agir com graça. Por meio da graça transformadora de Deus, somos capacitados para buscar soluções para o conflito através do intercâmbio aberto, sem recorrer à opressão ou à dominação.
Sendo assim, por meio da graça divina, está em nosso poder aumentar a dor infligida a nosso mundo ou contribuir para sua cura. [...] A transformação demanda despertar da indiferença e levar a compaixão a vítimas da pobreza e de todas as formas de injustiça na condição de comunidades de fé e líderes religiosos, devemos imaginar e desencadear caminhos alternativos, que rejeitem a violência e reconheçam a paz. Nossa época será lembrada em função daqueles que se dedicam à cura e à transformação da comunidade. Nosso mundo será moldado por aqueles que crêem e "assim, pois, sigamos as coisas que servem para a paz" (Romanos, 14:19).
Esse tipo de transformação é nossa única esperança de romper o ciclo vicioso da violência e injustiça - vicioso precisamente porque é o fruto do vício. A guerra e a paz são sistemas, e significam sistemas contraditórios de resolver conflitos. [...] Fazer a paz é uma questão de escolha individual e institucional, bem como de mudança individual e institucional. Para isso também é necessária a metanóia - uma mudança nas políticas e práticas. Fazer a paz requer compromisso e coragem, e demanda de nós uma disposição de nos tornarmos comunidades de transformação e buscar a justiça como pré-requisito para a transformação global.

A transformação como cura da Terra
[...] Quando somos transformados pela graça divina, podemos discernir adequadamente a injustiça da qual somos participantes ativos e não meros observadores passivos. Quando somos tocados pela graça de Deus, choramos pela des-graça que causamos ao não compartilhar os recursos de nosso planeta. Portanto, assim como a transformação do coração e da comunidade, a consciência ecológica também deriva da graça de Deus e requer uma metanóia correspondente - uma mudança de hábitos e estilos de vida. Paradoxalmente, tornamo-nos mais conscientes do impacto de nossas ações sobre outras pessoas e sobre a criação quando estamos preparados para abrir mão de alguma coisa. Porque, ao esvaziarmos nosso coração de nossos desejos egoístas, damos espaço para a graça de Deus. [...] Muitas vezes, nossos esforços pela reconciliação e transformação são prejudicados por uma falta de disposição de renunciar a formas estabelecidas como indivíduos ou instituições, por nossa recusa a abrir mão de qualquer consumismo de desperdício ou nacionalismo arrogante. Uma visão de mundo transformada nos permite perceber o impacto duradouro de nossas maneiras de agir sobre outras pessoas, especialmente os pobres, como imagem sagrada de Cristo, bem como o meio-ambiente, como sendo a marca silenciosa de Deus.

(*) Sua Santidade Bartolomeu I, arcebispo de Constantinopla, Nova Roma e patriarca ecumênico, é "primeiro entre iguais" entre os primazes das igrejas ortodoxas, com aproximadamente 250 milhões de fiéis em todo o mundo. [Fonte: 9ª Assembléia do CMI - Porto Alegre, Brasil]

09 fevereiro 2008

1º. Domingo da Quaresma

Leituras

Gênesis 2.4b-9,15-17,25-3.7
Salmo 51.1-13
Carta de São Paulo aos Romanos 5.12-19(20-21)
Evangelho de São Mateus 4.1-11


A Disciplina do jejum

"Algumas pessoas têm exaltado o jejum religioso elevando-o além das Escrituras e da razão; e outras o têm menosprezado por completo." John Wesley.

Em uma cultura onde a paisagem está pontilhada de restaurantes de todos os tipos, o jejum parece fora de lugar, fora de passo com os tempos. Com efeito, o jejum tem estado em geral descrédito, tanto dentro como fora da igreja, por muitos anos. Por exemplo, em minha pesquisa não consegui encontrar um único livro publicado sobre o jejum, de 1861 a 1954, um período de quase cem anos. Mais recentemente desenvolveu-se um renovado interesse pelo jejum, muito embora ele seja freqüentemente dogmático e carente de equilíbrio bíblico.
Que é que explicaria este quase total menosprezo por um assunto mencionado com tanta freqüência nas Escrituras e tão ardorosamente praticado pelos cristãos através dos séculos? Duas coisas. Em primeiro lugar, o jejum como resultado das excessivas práticas ascéticas da Idade Média, adquiriu uma péssima reputação. Com o declínio da realidade interior da fé cristã, desenvolveu-se uma crescente tendência para acentuar a única coisa que sobrou, a forma exterior. E sempre que existe uma forma destituída de poder espiritual, a lei assume o comando porque ela sempre traz consigo um senso de poder manipulador. Daí que o jejum foi submetido aos mais rígidos regulamentos e praticado com extrema automortificação e flagelação. A cultura moderna reagiu fortemente contra esses excessos e tendeu a confundir jejum com mortificação.
O segundo motivo por que o jejum passou por tempos difíceis no século passado é a questão da propaganda. A publicidade com a qual somos alimentados hoje convenceu-nos de que se não tomarmos três boas refeições por dia, entremeadas com diversas refeições ligeiras, corremos o risco de morrer de fome. Isto, aliado à crença popular de que é uma virtude positiva satisfazer a todo apetite humano, fez que o jejum parecesse obsoleto. Quem quer que seriamente tente jejuar é bombardeado com objeções. “Entendo que o jejum é prejudicial à saúde”. “Ele minará as suas forças e assim você não poderá trabalhar.” “Não destruirá ele o tecido saudável do corpo?” Tudo isto, naturalmente, é rematada tolice baseada no preconceito. Embora o corpo humano possa sobreviver apenas durante breve tempo sem ar ou sem água, ele pode passar muitos dias – em geral, cerca de quarenta – antes que comece a inanição. Sem que seja preciso concordar com as infladas alegações de alguns grupos, não é exagero dizer que, quando feito corretamente, o jejum pode ter efeitos físicos benéficos.
A Bíblia tem tanto que dizer a respeito do jejum que faríamos bem em examinar uma vez mais esta antiga Disciplina. O rol dos personagens bíblicos que jejuavam torna-se um “Quem é quem” das Escrituras: Moisés, o legislador; Davi, o rei; Elias, o profeta; Ester, a rainha; Daniel o vidente; Ana, a profetisa; Paulo, o apóstolo, Jesus Cristo, o Filho encarnado. [...] O jejum, está claro, não é uma Disciplina exclusivamente cristã; todas as grandes religiões do mundo reconhecem seu mérito. Zoroastro praticava o jejum, como o fizeram Confúcio e os iogues da Índia. Platão, Sócrates e Aristóteles jejuavam. Mesmo Hipócrates, pai da medicina moderna, acreditava no jejum. Ora bem, o fato de que todos esses indivíduos, na Bíblia e fora dela, tinham o jejum em alta conta não o torna certo ou mesmo desejável; isto, porém, deveria levar-nos a fazer uma pausa e nos dispormos a reavaliar as suposições populares de nosso tempo concernentes à Disciplina do jejum.

[Fonte: FOSTER, Richard. “Celebração da disciplina”. São Paulo: Vida, pg.63-65, 1995].

03 fevereiro 2008

Último Domingo depois da Epifania

Leituras

Êxodo 24.12-18
Salmo 99
Carta de São Paulo aos Filipenses 3.7-14
Evangelho de São Mateus 17.1-9

O ÍCONE DA TRASNFIGURAÇÃO

Neste ícone, contemplamos a figura de Cristo, que se dá a conhecer (teognosis), como verdadeiro Deus, aos apóstolos. É através de sua luz que isso se dá – “em sua luz contemplamos a Luz”(Sl.35,10). Podemos, com isso, dizer, que o ícone da Transfiguração do Senhor é o “Ícone da Luz”, pois é disso, precisamente, que ele fala. É o retrato visível da manifestação divina, da glória além do tempo. Segundo Paul Evdokimov, essa imagem é, mais que qualquer outra, o exemplo do princípio segundo o qual um ícone não há de ser objeto do olhar, senão de contemplação.
Um iconógrafo, depois de ter adquirido um conhecimento aprofundado em matéria de arte, inicia o seu ministério, pintando como primeiro ícone o da Transfiguração. Evdokimov comenta que o ícone, antes de tudo, é pintado não tanto com as cores, mas com a luz tabórica. É desta luz, que o iconógrafo se utilizará para escrever todos os ícones de sua vida. Este, como todos os ícones, é uma verdadeira página da Sagrada Escritura escrita não com tintas e pena, mas com cores e luz.
Iniciemos, portanto, a leitura do ícone:
O ícone da Transfigura retrata a cena central do Evangelho da Transfiguração, relatado nos três Evangelhos sinóticos. O Cristo sobe com os três apóstolos ao monte Tabor e lá se transfigura diante deles. “Seu rosto resplandeceu como o sol, suas vestes tornaram-se brancas como a luz, tão brancas que nenhum lavadeiro do mundo poderia alvejá-las assim.”(cf.Mt.17,2.Mc.9,3). Aparecem então Moisés e Elias, que conversavam com Jesus. Os apóstolos caem com a face em terra diante de tamanha glória. Pedro ousa elevar o olhar e diz: “Rabbi, é bom estarmos aqui; ergamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés, outra para Elias”. Eis que apareceu uma nuvem que os encobriu e dela veio uma voz que dizia: “este é meu Filho bem-amado, ouvi-o!”. Logo após, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, só, em sua simplicidade humana, com eles.

O monte

Cristo deseja conduzir estes apóstolos aos cumes do conhecimento de seu mistério. Para isso, sobe com eles o Monte Tabor. É na montanha de Deus, no Horeb, que Deus dá-se a conhecer a Moisés também. Em manifestação semelhante à Transfiguração, na sarça que não se consumia, Deus fala a ele e revela o seu Nome (cf.Ex.3), atitude, que expressa o desejo de Deus em restabelecer diálogo e intimidade com o homem. O desejo do Criador de revelar-se em seu Ser à criatura. É também no Horeb, que Elias conhece o Senhor e o escuta na suave brisa. Ele, como os apóstolos no Tabor, é obrigado a esconder o rosto, pois este Deus é terrível.
A montanha é o símbolo do conhecimento, e para se alcançar este conhecimento, é preciso galgar o duro e árduo caminho do monte, por entre as pedras e espinhos. O cenário rochoso do ícone revela a dureza deste mundo, as dificuldades que o homem tem que atravessar para chegar, ou melhor, para retornar a Deus.

Os Apóstolos

Eles ocupam a parte inferior do ícone, fazendo parte daquilo que é terrestre. Caem prostrados com a face em terra, por não terem suportado tamanho esplendor, e são tomados por um profundo sono (cf.Lc.9,32); mergulham na escuridão e ao acordar vêm a glória de Jesus. Algo semelhante acontece com Saulo, na estrada que leva à Damasco (cf.At.9). Ao ver a luz vinda do céu, cai por terra e mergulha na escuridão. Depois de três dias renasce o homem novo, Paulo, o servo de Deus. Esta passagem pelas trevas faz parte do mistério da morte e ressurreição, pelo qual todo aquele, que deseja conhecer a Deus e o seu Reino deve passar.
Eles não entendem muito bem o que está acontecendo, mas vivem este momento maravilhoso com intensidade e são tomados pelo temor e pela alegria celeste. Sentem o desejo ardente de permanecer mergulhados nesta paz tão sublime; “é bom estar aqui” diz Pedro, o primeiro a acordar.
Jesus tem a intenção de fazer com que estes apóstolos sejam introduzidos no mistério trinitário, da qual Ele é partícipe. Para isso, Ele infunde no coração deles o desejo pelas coisas do alto, que no alto deste monte já têm o privilégio de contemplar. Esse desejo pelas coisas eternas, nada mais é do que o desejo e a ânsia mais profunda de estar com Deus, de estar com o Santo. No alto do Tabor, Cristo transfigura a existência dos apóstolos, infundindo neles a vocação à santidade.
Ao ouvirem a voz vinda da nuvem: “Este é o meu filho bem-amado, aquele que me aprouve escolher. Ouvi-o”(Mt.17,5), eles são tomados de temor. “O fascínio do rosto transfigurado de Cristo não os impede de se sentirem assustados diante da majestade divina que os ultrapassa. Sempre que o homem vislumbra a glória de Deus, faz também a experiência da sua pequenez, provocando nele uma sensação de medo. Este temor é salutar. Recorda ao homem a perfeição divina, e ao mesmo tempo incita-o com um premente apelo à ‘santidade’”.

Moisés e Elias

São estes os dois personagens que os apóstolos vêm ao lado de Jesus. Têm os seus corpos levemente inclinados em sua direção, em sinal de reverência e adoração. Representam a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias). Cristo, porém, é a personificação, o centro e o cumprimento da Lei e de toda Profecia.
Moisés, à direita, trás consigo um volume da Lei, que parece oferecer ao Cristo. Tem a alegria de contemplar o que tantos profetas e justos quiseram ter contemplado (cf.Lc.10,23). Por sua vez, o Cristo, já prefigurado pela pessoa de Moisés no Antigo Testamento, trás em sua mão o Evangelho, a “Boa Nova”, que contém em si, de maneira perfeita, toda a Lei e o cumprimento de toda Profecia. Segundo Orígenes, o erro de Pedro ao expressar seu desejo de construir três tendas, está justamente neste ponto: “porque para a Lei, os Profetas e o Evangelho não existem três tendas mas uma só, que é a Igreja de Deus.”
Elias, à esquerda, com sua mão direita, aponta o Salvador; atitude que mostra, que Cristo é o centro das profecias. Como profeta, sua missão foi de revelar aos homens as Palavras que ouvia de Deus, e em particular o seu amor. Agora, no entanto, é o próprio Verbo, o próprio Amor, que vem e se revela em pessoa aos homens. Ele, que teve o privilégio de uma experiência de Deus, das mais belas narradas na Escritura, agora contempla a face do Senhor. Não precisa mais cobrir o rosto, como fez no Monte de Deus, o Horeb, mas fica face a face com Ele, e fala-lhe como a um amigo. Isto porque tanto ele como Moisés, já não pertencem mais a este mundo, mas têm parte na morada celeste. Os “amigos do esposo” têm este privilégio, o de poder falar-lhe ao coração.


O Cristo

O Cristo apresenta-se no centro do ícone, assim como no texto do Evangelho. Isto nos mostra que Ele, de fato, é o Centro de todas as coisas.É dele também que procede toda a luz, que ilumina a cena. Tudo está iluminado por esta luz maravilhosa, que irradia de sua pessoa. Ele é a própria Luz – “O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem.”(Jo.1,9).
Os evangelistas nos descrevem que Cristo brilhava como o sol e suas vestes eram de uma brancura fulgurante, como a luz. São João Crisóstomo comenta estas comparações como não sendo adequadas, mas eram as que descreviam mais de perto o que viram os apóstolos. Ele é brilhante como o sol, pois que astro conhecemos que tenha maior brilho? Branco como a luz ou como a neve; pois o que há de mais branco? Se o resplendor, segundo João Crisóstomo, tivesse sido como o sol ou como a neve, com certeza, eles não teriam caído com a face em terra; mas porque resplandecesse mais que isto, sim: este é um motivo para caírem por terra.
Os círculos ao redor da figura de Jesus representam os céus. Percebe-se que Ele ultrapassa os seus limites, pois nem mesmo os céus são capazes de conter tamanha grandeza.
Cristo está ao centro do ícone, pois é Ele o centro não só do acontecimento teofânico, mas é em pessoa o Centro e Senhor de tudo o que existe, do visível e do invisível. Ele está entre o céu e a terra, como que suspenso. É o ponto de intersecção entre a realidade celeste e a terrestre; entre a natureza divina e a humana. “Jesus realiza a união de Deus com o homem e do homem com Deus.” É o Unigênito que, saindo do seio do Pai, veio habitar em nosso meio e revelou a Deus, a quem ninguém jamais viu (cf.Jo.1,18). Através deste Mistério, Cristo nos revela sua natureza divina e percebemos claramente, que ele, de fato é o “ícone do Pai”.
Da grande luz, que envolve o Cristo, partem três raios, que incidem diretamente sobre os apóstolos. Por não suportarem tamanho esplendor, caem de rosto por terra, visto que, nenhum homem pode ver a face de Deus e continuar vivo (cf.Ex.33,20). A “luz tabórica”, contemplada pelos apóstolos, é quase nada, uma sombra, em comparação com a luz que envolve a Cristo, a luz inacessível onde habita Deus (cf.IITim.6,16).
Eles contemplam a glória de Cristo, conforme sua capacidade humana, através desta luz que lhes é concedida, pois é em sua luz que podemos contemplar a verdadeira Luz (cf.Sl.35,10). É dada a eles a graça de poderem ver com os seus olhos de homens aquilo que pertence ao mundo espiritual. Segundo a teologia e a tradição orientais, na verdade, não é o Cristo que muda, pois este é Deus, e, em Deus não há mudanças, Ele é eterno desde todo o sempre, “o mesmo ontem, hoje e sempre”. A mudança ou “metamorfose”, acontece nos três escolhidos. São seus olhos humanos que se abrem para uma dimensão espiritual e escatológica. Já neste mundo lhes é dado contemplar o Reino dos Céus, como havia prometido o Mestre.
Aquele que contempla o ícone da Transfiguração, como os apóstolos, recebe um foco da luz divina, que envolve o Senhor. E através desse foco de luz pode contemplar o mistério, que antes de ser compreendido, deve ser vivido em toda a sua intensidade. Visto que o ícone evoca uma presença atual do mistério proposto, assim como as Escrituras o fazem de maneira ainda mais perfeita, aquele que o contempla é convidado a participar e viver o que se lhe apresenta aos olhos.
Busquemos pois escalar este monte santo para ali recebermos, também nós, a graça de sermos transfigurados, antecipando assim, já neste mundo, o Reino dos Céus. Que através desta janela para o mundo celeste, que é o ícone, um raio desta luz misteriosa incida sobre nós e possamos ver o Cristo em sua Glória. Amém.

[Fonte: http://www.transfiguracao.com.br]