03 fevereiro 2008

Último Domingo depois da Epifania

Leituras

Êxodo 24.12-18
Salmo 99
Carta de São Paulo aos Filipenses 3.7-14
Evangelho de São Mateus 17.1-9

O ÍCONE DA TRASNFIGURAÇÃO

Neste ícone, contemplamos a figura de Cristo, que se dá a conhecer (teognosis), como verdadeiro Deus, aos apóstolos. É através de sua luz que isso se dá – “em sua luz contemplamos a Luz”(Sl.35,10). Podemos, com isso, dizer, que o ícone da Transfiguração do Senhor é o “Ícone da Luz”, pois é disso, precisamente, que ele fala. É o retrato visível da manifestação divina, da glória além do tempo. Segundo Paul Evdokimov, essa imagem é, mais que qualquer outra, o exemplo do princípio segundo o qual um ícone não há de ser objeto do olhar, senão de contemplação.
Um iconógrafo, depois de ter adquirido um conhecimento aprofundado em matéria de arte, inicia o seu ministério, pintando como primeiro ícone o da Transfiguração. Evdokimov comenta que o ícone, antes de tudo, é pintado não tanto com as cores, mas com a luz tabórica. É desta luz, que o iconógrafo se utilizará para escrever todos os ícones de sua vida. Este, como todos os ícones, é uma verdadeira página da Sagrada Escritura escrita não com tintas e pena, mas com cores e luz.
Iniciemos, portanto, a leitura do ícone:
O ícone da Transfigura retrata a cena central do Evangelho da Transfiguração, relatado nos três Evangelhos sinóticos. O Cristo sobe com os três apóstolos ao monte Tabor e lá se transfigura diante deles. “Seu rosto resplandeceu como o sol, suas vestes tornaram-se brancas como a luz, tão brancas que nenhum lavadeiro do mundo poderia alvejá-las assim.”(cf.Mt.17,2.Mc.9,3). Aparecem então Moisés e Elias, que conversavam com Jesus. Os apóstolos caem com a face em terra diante de tamanha glória. Pedro ousa elevar o olhar e diz: “Rabbi, é bom estarmos aqui; ergamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés, outra para Elias”. Eis que apareceu uma nuvem que os encobriu e dela veio uma voz que dizia: “este é meu Filho bem-amado, ouvi-o!”. Logo após, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, só, em sua simplicidade humana, com eles.

O monte

Cristo deseja conduzir estes apóstolos aos cumes do conhecimento de seu mistério. Para isso, sobe com eles o Monte Tabor. É na montanha de Deus, no Horeb, que Deus dá-se a conhecer a Moisés também. Em manifestação semelhante à Transfiguração, na sarça que não se consumia, Deus fala a ele e revela o seu Nome (cf.Ex.3), atitude, que expressa o desejo de Deus em restabelecer diálogo e intimidade com o homem. O desejo do Criador de revelar-se em seu Ser à criatura. É também no Horeb, que Elias conhece o Senhor e o escuta na suave brisa. Ele, como os apóstolos no Tabor, é obrigado a esconder o rosto, pois este Deus é terrível.
A montanha é o símbolo do conhecimento, e para se alcançar este conhecimento, é preciso galgar o duro e árduo caminho do monte, por entre as pedras e espinhos. O cenário rochoso do ícone revela a dureza deste mundo, as dificuldades que o homem tem que atravessar para chegar, ou melhor, para retornar a Deus.

Os Apóstolos

Eles ocupam a parte inferior do ícone, fazendo parte daquilo que é terrestre. Caem prostrados com a face em terra, por não terem suportado tamanho esplendor, e são tomados por um profundo sono (cf.Lc.9,32); mergulham na escuridão e ao acordar vêm a glória de Jesus. Algo semelhante acontece com Saulo, na estrada que leva à Damasco (cf.At.9). Ao ver a luz vinda do céu, cai por terra e mergulha na escuridão. Depois de três dias renasce o homem novo, Paulo, o servo de Deus. Esta passagem pelas trevas faz parte do mistério da morte e ressurreição, pelo qual todo aquele, que deseja conhecer a Deus e o seu Reino deve passar.
Eles não entendem muito bem o que está acontecendo, mas vivem este momento maravilhoso com intensidade e são tomados pelo temor e pela alegria celeste. Sentem o desejo ardente de permanecer mergulhados nesta paz tão sublime; “é bom estar aqui” diz Pedro, o primeiro a acordar.
Jesus tem a intenção de fazer com que estes apóstolos sejam introduzidos no mistério trinitário, da qual Ele é partícipe. Para isso, Ele infunde no coração deles o desejo pelas coisas do alto, que no alto deste monte já têm o privilégio de contemplar. Esse desejo pelas coisas eternas, nada mais é do que o desejo e a ânsia mais profunda de estar com Deus, de estar com o Santo. No alto do Tabor, Cristo transfigura a existência dos apóstolos, infundindo neles a vocação à santidade.
Ao ouvirem a voz vinda da nuvem: “Este é o meu filho bem-amado, aquele que me aprouve escolher. Ouvi-o”(Mt.17,5), eles são tomados de temor. “O fascínio do rosto transfigurado de Cristo não os impede de se sentirem assustados diante da majestade divina que os ultrapassa. Sempre que o homem vislumbra a glória de Deus, faz também a experiência da sua pequenez, provocando nele uma sensação de medo. Este temor é salutar. Recorda ao homem a perfeição divina, e ao mesmo tempo incita-o com um premente apelo à ‘santidade’”.

Moisés e Elias

São estes os dois personagens que os apóstolos vêm ao lado de Jesus. Têm os seus corpos levemente inclinados em sua direção, em sinal de reverência e adoração. Representam a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias). Cristo, porém, é a personificação, o centro e o cumprimento da Lei e de toda Profecia.
Moisés, à direita, trás consigo um volume da Lei, que parece oferecer ao Cristo. Tem a alegria de contemplar o que tantos profetas e justos quiseram ter contemplado (cf.Lc.10,23). Por sua vez, o Cristo, já prefigurado pela pessoa de Moisés no Antigo Testamento, trás em sua mão o Evangelho, a “Boa Nova”, que contém em si, de maneira perfeita, toda a Lei e o cumprimento de toda Profecia. Segundo Orígenes, o erro de Pedro ao expressar seu desejo de construir três tendas, está justamente neste ponto: “porque para a Lei, os Profetas e o Evangelho não existem três tendas mas uma só, que é a Igreja de Deus.”
Elias, à esquerda, com sua mão direita, aponta o Salvador; atitude que mostra, que Cristo é o centro das profecias. Como profeta, sua missão foi de revelar aos homens as Palavras que ouvia de Deus, e em particular o seu amor. Agora, no entanto, é o próprio Verbo, o próprio Amor, que vem e se revela em pessoa aos homens. Ele, que teve o privilégio de uma experiência de Deus, das mais belas narradas na Escritura, agora contempla a face do Senhor. Não precisa mais cobrir o rosto, como fez no Monte de Deus, o Horeb, mas fica face a face com Ele, e fala-lhe como a um amigo. Isto porque tanto ele como Moisés, já não pertencem mais a este mundo, mas têm parte na morada celeste. Os “amigos do esposo” têm este privilégio, o de poder falar-lhe ao coração.


O Cristo

O Cristo apresenta-se no centro do ícone, assim como no texto do Evangelho. Isto nos mostra que Ele, de fato, é o Centro de todas as coisas.É dele também que procede toda a luz, que ilumina a cena. Tudo está iluminado por esta luz maravilhosa, que irradia de sua pessoa. Ele é a própria Luz – “O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem.”(Jo.1,9).
Os evangelistas nos descrevem que Cristo brilhava como o sol e suas vestes eram de uma brancura fulgurante, como a luz. São João Crisóstomo comenta estas comparações como não sendo adequadas, mas eram as que descreviam mais de perto o que viram os apóstolos. Ele é brilhante como o sol, pois que astro conhecemos que tenha maior brilho? Branco como a luz ou como a neve; pois o que há de mais branco? Se o resplendor, segundo João Crisóstomo, tivesse sido como o sol ou como a neve, com certeza, eles não teriam caído com a face em terra; mas porque resplandecesse mais que isto, sim: este é um motivo para caírem por terra.
Os círculos ao redor da figura de Jesus representam os céus. Percebe-se que Ele ultrapassa os seus limites, pois nem mesmo os céus são capazes de conter tamanha grandeza.
Cristo está ao centro do ícone, pois é Ele o centro não só do acontecimento teofânico, mas é em pessoa o Centro e Senhor de tudo o que existe, do visível e do invisível. Ele está entre o céu e a terra, como que suspenso. É o ponto de intersecção entre a realidade celeste e a terrestre; entre a natureza divina e a humana. “Jesus realiza a união de Deus com o homem e do homem com Deus.” É o Unigênito que, saindo do seio do Pai, veio habitar em nosso meio e revelou a Deus, a quem ninguém jamais viu (cf.Jo.1,18). Através deste Mistério, Cristo nos revela sua natureza divina e percebemos claramente, que ele, de fato é o “ícone do Pai”.
Da grande luz, que envolve o Cristo, partem três raios, que incidem diretamente sobre os apóstolos. Por não suportarem tamanho esplendor, caem de rosto por terra, visto que, nenhum homem pode ver a face de Deus e continuar vivo (cf.Ex.33,20). A “luz tabórica”, contemplada pelos apóstolos, é quase nada, uma sombra, em comparação com a luz que envolve a Cristo, a luz inacessível onde habita Deus (cf.IITim.6,16).
Eles contemplam a glória de Cristo, conforme sua capacidade humana, através desta luz que lhes é concedida, pois é em sua luz que podemos contemplar a verdadeira Luz (cf.Sl.35,10). É dada a eles a graça de poderem ver com os seus olhos de homens aquilo que pertence ao mundo espiritual. Segundo a teologia e a tradição orientais, na verdade, não é o Cristo que muda, pois este é Deus, e, em Deus não há mudanças, Ele é eterno desde todo o sempre, “o mesmo ontem, hoje e sempre”. A mudança ou “metamorfose”, acontece nos três escolhidos. São seus olhos humanos que se abrem para uma dimensão espiritual e escatológica. Já neste mundo lhes é dado contemplar o Reino dos Céus, como havia prometido o Mestre.
Aquele que contempla o ícone da Transfiguração, como os apóstolos, recebe um foco da luz divina, que envolve o Senhor. E através desse foco de luz pode contemplar o mistério, que antes de ser compreendido, deve ser vivido em toda a sua intensidade. Visto que o ícone evoca uma presença atual do mistério proposto, assim como as Escrituras o fazem de maneira ainda mais perfeita, aquele que o contempla é convidado a participar e viver o que se lhe apresenta aos olhos.
Busquemos pois escalar este monte santo para ali recebermos, também nós, a graça de sermos transfigurados, antecipando assim, já neste mundo, o Reino dos Céus. Que através desta janela para o mundo celeste, que é o ícone, um raio desta luz misteriosa incida sobre nós e possamos ver o Cristo em sua Glória. Amém.

[Fonte: http://www.transfiguracao.com.br]